quinta-feira, 25 de agosto de 2022

THE COMPLETE SHORT PROSE

 

   No mesmo ano em que deu à estampa um conhecido ensaio sobre James Joyce (1882-1941), Samuel Beckett (1906-1989) estreou-se na ficção com um conto intitulado “Assumption”. Estávamos em 1929, ambos os textos surgiram na revista literária “transition” de Eugene Jolas (1894-1952). Fundada em 1927, a “transition” foi um relevante órgão de afirmação das vanguardas no início do século XX. Nela publicaram, entre outros, o poeta norte-americano Hart Crane (1899-1932), o alemão Gottfried Benn (1886-1956), o francês Robert Desnos (1900-1945). Ainda que se tenha afirmado, sobretudo, como dramaturgo e romancista, Beckett publicou contos durante todo o seu percurso. Por cá, que eu tenha conhecimento, foram traduzidos “Primeiro amor” (1946), a colectânea “Novelas e Textos Para Nada” (1955) e, no n.º 15 da revista Ficções, “Imaginação morta imagina” (1965) e “Ouvido no Escuro I e II” (1979). Este díptico é composto por dois textos particularmente breves, sínteses preciosas do universo literário do autor de “Jogo do Fim”.
   Um volume como “The Complete Short Prose 1929-1989” (Grove Press, New York, 1995), organizado por S. E. Gontarski (1942), revela-nos todo um conjunto de material que levanta, desde logo, dúvidas sobre a identidade de cada um destes textos. Estamos perante peças finalizadas ou fragmentos de prosas inconclusas? São estas narrativas projectos de obras por realizar ou relatos autónomos e independentes? Talvez um pouco de tudo. “From an Abandobed Work” (1954-1955), por exemplo, sugere a hipótese do inacabado, ainda que, na verdade, o texto resista perfeitamente isolado, podendo até resultar como um apanhado das ideias desenvolvidas pelo autor nos seus romances e em algumas das suas peças para teatro. A personagem, se assim lhe podemos chamar, que nesse texto é lenta a caminhar, mas veloz a correr, de algum modo encarna a obsessão de Beckett pelo relativismo das unidades de medida no tempo e no espaço.
   “Imagination Dead Imagine”, que M. S. Lourenço (1936-2009) traduziu para a revista Ficções, chegou a ser editado com a referência de se tratar do mais breve romance alguma vez escrito. Aqui temos um desses autores para quem a extensão não é determinável pelo número de palavras que compõem um texto, mas antes pela complexidade da relação estabelecida entre os termos e pelo que esta relação deixa em aberto, insinua, subverte. Diz S. E. Gontarski na introdução: «As histórias de Beckett têm sido frequentemente tratadas como anormais ou aberrantes, uma espécie de alienígenas na tradição da ficção curta que os críticos continuam a esforçar-se para entender não só quanto ao que significam — se é que têm algum “significado” — como relativamente à sua natureza: histórias ou romances, prosa ou poesia, fragmentos rejeitados ou contos completos.»
   Veja-se o caso do brevíssimo “neither” (1976). Originalmente publicado em 1979, este texto esteve para ser incluído numa colectânea de poesia. Beckett resistiu à inclusão por considerá-lo um texto em prosa, uma história acabada. Foi escrito em 1976 para ser musicado pelo compositor norte-americano Morton Feldman (1926-1987). “Fizzles” (1973-75) é um conjunto precioso de oito textos que estabelecem uma relação entre si inspirando a ideia de capítulos, porventura outro romance curto em que sobrevém a perplexidade psicológica e ontológica dos intervenientes, colocados invariavelmente em situações indefinidas quanto à sua própria natureza, ao espaço que ocupam, ao tempo em que se movimentam.
   A Beckett interessa o anómalo, nestes textos explorado a partir de um impulso que torna urgente a escrita e acaba por advir numa expressão poderosa das emoções. Mesmo quando são aparentemente intraduzíveis — é o caso do brevíssimo “Text” (1932), com um ritmo intenso composto por rimas internas e palavras inventadas —, estas histórias, apesar da sua complexidade, conservam uma simplicidade poética que, diz Gontarski, faz-nos pensar terem sido narradas para um gravador. Nem sempre é claro se os intervenientes estão vivos ou mortos, actuam num mundo pré ou pós-apocalíptico, a ideia de eco é recorrente, assim como a expressão “em vão”. A música afirma-se pela impossibilidade do silêncio, como em John Cage (1912-1992).
   As percepções dos sons, das cores, das distâncias, a doença, o modo subversivo de olhar a realidade, tudo isso está incluído nestas histórias de prostitutas e de vagabundos, gente com anomalias físicas e psicológicas, como se a cabeça se voltasse para o interior, como se os sentidos se voltassem para dentro, tentando compreender as contradições de um ser, os paradoxos ontológicos na existência de um ser. De resto, podemos afirmar que a própria ideia de ser é, desde logo, colocada em questão: o que é ser? A prosa desenvolve-se com interrupções abruptas, mudanças de direcção, saltos e adiamentos.
   Há, porém, uma relevância da memória na construção do sujeito que narra, uma relevância amiúde traída por dificuldades comunicacionais, rupturas, disrupções afectivas: «Ah, meu pai e minha mãe, pensar que provavelmente estão no paraíso, eram tão boas pessoas. Deixai-me ir para o inferno, é tudo quanto peço, para lá continuar amaldiçoando-os, com eles a olharem para baixo e a ouvirem-me, talvez isso possa tirar-lhes um pouco do brilho à bem-aventurança.» (De “From na Abandoned Work”, versão minha). Alguns destes textos também se assemelham a longas didascálicas, projectos para curta-metragens ou peças teatrais distópicas. “Stirrings Still” (1988), o último dos escritos aqui reunidos, se excluirmos os apêndices, é um relato impressionante dedicado ao editor Barney Rosset (1922-2012). Vou guardá-lo para depois.

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