quarta-feira, 26 de outubro de 2022

UM POEMA DE LUÍS CARMELO

 

(fotografia de Vitorino Coragem)

10. BORGES

Havia um homem
com um oceano impresso nos olhos

dizia que uma nuvem pode ser
subterrânea como o sabor do café
hoje à tarde na esplanada

dizia que o açucareiro de vidro
tem forma abissal
profunda

como aquelas cordilheiras
que são precursoras de quem inventou
já quase tudo há mais de dois milénios

podiam também ser percursoras
dentro de uma língua que dispusesse
de vocábulos
para cada folha de todas as árvores
para cada pedra de todas as montanhas ou
para cada açucareiro de todas as esplanadas

a esplanada é uma filosofia analítica
que se descobre sem futuro
para todos esses passados quando nela
se escutam as vozes ainda paradas

e se percebe de repente que são vozes
retroactivas

como toda a história da poesia 
ao longo dos cortinados a sacudir a brisa
que entra pelas vidraças da cervejaria

talvez a plagiar a falsa comoção
das carminas buranas
mas sem qualquer música
vozes para devolver
toda a linguagem à sua fonte

com o pulso aberto
claro
tal como o pensamento caído de vez
na fossa abissal do oceano

que faz de remoinho aos olhos
cheios de ar

ar despatriado

sim
o teu revólver sempre foi o meu nome.

Luís Carmelo, in Biografia do Mundo, Abysmo, Maio de 2022, pp. 318-319.

2 comentários:

Transhümantes disse...

Muito interessante este poema, desconhecia o poeta.
Há uns meses descobri uma poetisa basca que me surpreendeu também, talvez a conheças chama-se Silvia Delgado Fuentes. Encontrei-a num podcast que se chama "Olvida tu equipaje".
Obrigado pela informação.


Abraço

hmbf disse...

Não conheço Silvia Delgado Fuentes. Grato.