sábado, 19 de novembro de 2022

CYCLIC EPISODE (1965)

 


Pedem-me que escreva sobre o tempo e o natal e eu, numa mortandade crónica, respondo que sim sem saber quando e como ou o quê. Aquiesço em piloto automático, com a cabeça em dossiers atrasados, convites adiados, programações aos soluços, formações por planificar, cruzes a pesar na consciência e sobre os ombros. Envolto em ausência de vontade, amortalhado em cansaços e saturações, deito-me, fecho os olhos e não durmo. O menino, nas palhas deitado, nas palhas amorfo, observa o mundo e suspira, respira fundo, volta-se para o lado e depois para o outro, boceja, ressona. Deliro com problemas fundados não sei em quê nem porquê. Lembro-me que troquei o Casino Lisbonense pelo do Estoril, apostei as fichas certas na casa errada. Tenho de descobrir quanto antes quem foram os escritores da corte de D. João V. Esperam isso de mim, é o que esperam, não posso falhar. Entretanto, adiados em papel cada vez mais húmido, um romance e uma novela e uma colectânea de contos e os poemas descurados e todas essas coisas que deviam ser mesa posta não tivesse a vida ficado voltada do avesso e as mesas todas de pernas para o ar. Aguarda também resposta a substituição do sistema de intercomunicadores, as traduções do francês, etc. Que fazer com esta saturação que entorpece o espírito? Há que prestar atenção ao real, dizem os advogados do realismo, e eu cheio de real até à ponta dos cabelos anseio por sonhos e imaginações e mitos e mundos alternativos a este que sufoca, desespera, entedia. Três vezes três, melhor não ansiar. Quanto mais uma coisa é desejada menos disponível nos parece.

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