sábado, 26 de novembro de 2022

TRAGÉDIA NO FEMININO

 


   Comecemos por Leonora Carrington (1917-2011), nome que nos habituámos a ver associado a uma pintura surrealista em que ecoa, sobremaneira, o universo fantástico de Hieronymus Bosh (1450-1516). Amante de Max Ernst (1891-1976) nesse período convulso de transição da década de 1930 para 40, foi com ele que publicou o panfleto “La Maison de la Peur” (1938). Carrington iniciou desse modo uma actividade literária intermitente, a qual seria forçoso pretender separar do impulso que está na origem do seu trabalho no domínio das artes visuais. Além de contos, publicou o relato de cariz autobiográfico recuperado este ano pelas Edições Snob. “Em Baixo” (Snob, Março de 2022) já havia sido editado em tempos pela Black Sun Editores, informação que justamente não foi esquecida nesta edição. A tradução de Leonor Castro Nunes, a partir da versão inglesa, teve por base a tradução do francês de Carlos Leite. Faz sentido que assim seja, pois isso mesmo permite que neste belíssimo objecto, como é apanágio da editorial em causa, tenhamos acesso a uma nova versão que resulta de um trabalho de cotejamento enriquecedor da fixação do texto em língua portuguesa.
   O prefácio de Henri Parisot (1908-1979), editor da versão francesa em 1945, dá conta do ambiente em que “Em Baixo” veio a lume. Carrington, de origens inglesas abastadas, foi acolhida entre surrealistas parisienses como uma espécie de musa, nomeadamente para Ernst, casado e mais velho do que a jovem amante. O espoletar da Segunda Guerra Mundial e a detenção do artista alemão em 1939 farão precipitar uma série de acontecimentos que transformarão para sempre, e de modo trágico, o percurso de Leonora & Ernst. Este voltaria a ser preso no ano seguinte, sendo transferido para o campo de Saint-Nicolas, de onde conseguiu fugir duas vezes, acabando casado com Peggy Guggenhein em Nova Iorque. Entretanto, Leonora Carrington ficara entregue a si mesma, desesperada, fugindo depois para Espanha. O que relatou oralmente e veio a ser publicado sob o título “Em Baixo” refere-se ao período espanhol, onde foi hospitalizada, internada num hospício e sujeita a terapias dolorosíssimas.
   Estes textos dão testemunho de uma descida aos infernos da insanidade, «um relato impiedoso da experiência da loucura» (p. 36), como refere Parisot, não só a da fragilizada protagonista, como também a de todos quantos à sua volta foram incapazes de lidar com o sofrimento sem lhe infligirem mais horror. No hospício, a sua mente encontra um escape para a percepção da injustiça da sociedade erigindo um mundo alternativo, labiríntico, no qual se lança paralisada por uma angústia e um sufoco insuportáveis: «Faziam de mim o que queriam e eu obedecia como um boi» (p. 117). Escapou ao inferno quando, fazendo ponte em Lisboa para novo internamento na África do Sul, conseguiu asilo na embaixada mexicana. Veio a falecer na Cidade do México com 94 anos.  
   Destino diferente foi o de Miyó Vestrini (1938-1991), pseudónimo literário de Marie-José Fauvelle Ripert. Nascida em Nîmes, emigrou com a mãe para a Venezuela quanto tinha apenas 9 anos. A sua participação, ainda adolescente, em grupos de artistas e poetas vanguardistas, de inspiração surrealista, dá conta de um interesse que se estenderia à actividade jornalística. Chegou a ser premiada nesta área em duas ocasiões, tendo trabalhado no gabinete de imprensa da embaixada venezuelana em Itália. A estreia em livro deu-se no ano de 1971 com “Las histórias de Giovanna”, ao qual se seguiram “El invierno próximo” (1975) e “Pocas virtudes” (1986). Foi este último que a editora Barco Bêbado publicou em Março deste ano, acoplando-lhe “Valiente ciudadano”, um manuscrito que ficara inédito à data do suicídio da autora. A tradução e a introdução, excelentes, são da responsabilidade de Miguel Cardoso.
   Poucas Virtudes” e “Cidadão Valente” denotam uma poesia fundamentada nas perturbações de um quotidiano desesperançado, terrivelmente consciente do “desconcerto de um mundo” que quanto mais se nos torna claro menos nos parece remediável. Vestrini não é, porém, um desses poetas suicidas atacados pela melancolia patológica que transforma por vezes o discurso em lamurientas exibições de dores íntimas. O tom confessional dos versos, mesmo quando contaminados pelo olhar depressivo que a existência e a experiência inspiram, dá conta de uma fúria e de uma raiva que os expurga de qualquer tipo de sentimentalidade. Creio não haver, neste caso, uma idealização do sofrimento, muito menos qualquer tipo de lirismo pessimista, à maneira, por exemplo, de um Emil Cioran (1911-1995) — que, como é sabido, morreu de velho —, sendo muito mais perceptível a percepção racional de um absurdo existencial que acorrenta o pensamento ao desastre da ausência de sentido. Vazio e solidão. Tal me parece evidente em poemas como “Os Muros da Primavera” (literalmente um murro no estômago) ou “Simples Assim”. De “Cidadão Valente”, este
 
TESTAMENTO
 
A quem deixarás as tuas coisas quando morreres?
Com os olhos absolutamente abertos,
cai uma lâmina de sol na cesta de fruta.
A Primavera não se deixa prever.
Deixá-lo,
farei a lista, enviarei as cartas.
E já que não consegues dormir,
há tempo para encerar a mesa da sala de jantar.
Acabou o sabão das limpezas,
as laranjas estão podres,
a banheira cheia de pêlos e grumos.
Ninguém,
que eu saiba,
se pronunciou sobre o teu desaparecimento.

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