domingo, 25 de dezembro de 2022

MISTERIOSO (1960)

 


Foi um Natal pródigo, ofereceram-me uma vitrola e uma cadeira de escritório nova. Posso agora recostar-me confortavelmente a ouvir Jay Jay Johnson, Sonny Rollins, Horace Silver, Thelonious Monk, Paul Chambers, Art Blakey. Não merecia tanto, apesar da fidelidade canina e da obediência com que cumpri todos os deveres. Contam-se pelos dedos os crimes, os pecados confessáveis, os vícios incorrigíveis. Vejamos. Pequei na gula mais pelo que bebi do que pelo que comi, a despeito do cuidado na separação dos lixos. Não houve garrafa que tivesse desperdiçado. E foram tantas. Avareza só em matéria de liberdade. Quero dizer, sou ganancioso quanto a espaço próprio, solidão própria, cabeça própria. Partilho o mínimo indispensável para não me transformar num cepo. Um santo quanto a luxúria, salvo raros instantes de amor-próprio e a prática onanista que me livra de pecados maiores. Nada de putedo nem de adultérios, coisas que dão morte certa. Não obstante a cobiça de inúmeras mulheres alheias, o que se perdoa dada a idade. A ira é talvez entre os pecados aquele que poderia ditar-me pena capital. Irei-me em demasia, encolerizado, sobretudo, comigo mesmo, com as aldrabices e as hipérboles, com a melancolia exasperante nas horas vagas, com a inutilidade de sonhos só por preguiça, medo e comodismo não concretizados. Por inveja não mereço morrer e tenho direito a paraíso com mil virgens ao dispor. Que invejei eu? A minha vida seria invejável não fosse eu a vivê-la. Talvez a preguiça seja, a par da ira, o pior legado que tenho para deixar. Não preguiça de quem muito dorme, mas preguiça de quem muito cogita, aquela ronha de ficar deitado a olhar para o tecto contemplando frestas e contando nódoas de bolor. Aquela ronha de ficar deitado a olhar para o texto contemplando frestas e contando nódoas de bolor. Compenso com trabalho a preguiça de que padeço, mas nem sei bem como consigo equilibrar as coisas. Agora mesmo, a sensação de que devia estar a fazer outra coisa, uma coisa diferente, não esta prosa vazia e inútil, este desperdício de palavras atiradas ao ar e levadas pelo vento, na enxurrada do olvido, ao som de “Misterioso”. Sobra-me o quê? Orgulho? Soberba. Minha falecida mãe, que Deus a tenha no céu, dizia-me simplório. Sabia ela mais ou menos que eu julgo saber de mim?

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