Vamos lá a ver, a actriz Keyla Brasil tem toda a razão em
reivindicar o direito a uma vida digna. É matéria de direitos humanos. A causa
trans, se bem a entendo, tal como muitas outras causas congéneres, parte desse princípio
humanista do direito que todos os seres humanos devem ter à felicidade,
independentemente da sua etnia, identidade de género, orientação sexual, etc.
Também julgo porreiro, e até fico feliz, que tenha escolhido um teatro para se
manifestar, retirando daí partido de algo que só beneficia o próprio teatro: é
lugar de democracia e, tão surpreendentemente quão felizmente, garantiu-lhe
visibilidade. Esta última parte, bem sei, é polémica, pois a visibilidade vem
mais da partilha massiva do vídeo dos acontecimentos do que do acontecimento em
si. Seja como for, está-se bem. O que me parece completamente errado é o
argumento usado e, pior ainda, a cedência da companhia ao argumento usado.
Partir do princípio de que uma personagem trans deve ser representada por uma
actriz trans é um erro, tal como o é a ideia peregrina de que um texto escrito
por um negro só poderá ser devidamente traduzido por um negro. Caímos numa
tripla armadilha: a do “deve ser”, a dessa distinção sobejamente debatida entre
representação e representatividade e, por fim, a de que para certos trabalhos
há identidades de género mais capazes do que outras (não era suposto
combatermos esta discriminação?). Este Natal ofereceram-me um livro com
citações de Mao Tsé-Tung. Lá está o capítulo sobre o que a arte "deve ser" e o
que a arte não "deve ser". A mania do "deve ser" em matéria de liberdade artística
sempre me fez muita confusão, assim como todas as lógicas impositivas que vão
no sentido de cercear essa mesma liberdade artística. Outra questão que não julgo
devidamente discutida é a de uma putativa “desconstrução de um lugar de
privilégio”. Lugares de privilégio em teatro? Estão a falar de quem e do quê?
Das e dos modelos que nunca estudaram representação em lado nenhum e são
contratadas e contratados para representar? Num território tão precário como o
da cultura, sobrevivência não pode ser confundida com privilégio. A minha
avozinha também dizia que eu era um privilegiado quando me via agarrado aos
livros, ela que nem a quarta classe tinha. E eu fartei-me de ouvir gente a
mandar este e aquele “cavar batatas” para saber o que a vida custa. A temática
dos lugares de privilégio é tão resvaladiça que, sem querermos, acabamos muitas
vezes a fazer figura de “gajos de Alfama” quando pretendíamos dar uma arzinho
de sofisticação. Portanto, força Keyla aí na luta. Ela é justa e deve ser
apoiada. O argumento é que, caramba, só vai mesmo seduzir quem já está
seduzido. E agora vou ali chupar pau, venho já.
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