domingo, 29 de janeiro de 2023

"LAÇOS", DE DANIEL KEENE

 


   O dramaturgo australiano Daniel Keene (n. 1955) referiu-se algures às suas peças curtas como «poemas escritos para teatro, tanto uma celebração do valor do teatro quanto um desafio aos seus valores predominantes.» Uma análise profunda destas palavras obrigaria a esclarecimentos sobre quais os valores predominantes do teatro, mas podemos tentar compreender o alcance de tais noções partindo da poética que vislumbramos nos textos de Keene. Essa poética inscreve-se numa linha anglo-saxónica de tipo realista, atenta ao pormenor que tende a passar despercebido na vertigem do quotidiano e enraizada nas problemáticas sociais que afectam o seio doméstico, muitas vezes estilhaçando a muralha familiar ou, pelo menos, desestabilizando-a.
   Por outro lado, monólogos como “O que resta” e “A Chuva” enviam-nos para territórios diversos, mais ligados à memória colectiva (é o caso da evocação do holocausto em “A Chuva”) ou individual (é o caso de “O que resta”). Baseio-me nas encenações destas peças que Luís Varela incluiu em espectáculos distintos: “A Chuva” - em “Terra Natal” (2021), para o Teatro da Rainha -, “O que resta” - em “Laços” (2022), para a companhia Baal 17. Nestes dois casos, o carácter elíptico do discurso pede ao receptor, o público leitor ouvinte, a construção de uma situação para a personagem que permita conferir fio narrativo e sentido às palavras proferidas. Este exercício é mais exigente em “O que resta”, sobretudo tendo em conta a solução encontrada (ou por encontrar) para esse monólogo que introduz o espectáculo a que se deu o nome “Laços”.
   Para quem fala o homem que nos fala? Está sentado, segura um molho de folhas. Diante de si, um microfone disposto sobre o tampo de uma secretária. Atrás, uma parede lisa. Estará num tribunal? Num interrogatório? Conferência de imprensa? Dirige-se ao público na sala, certamente, mas que tipo de relação estabelece com ele? Percebemos haver nas suas palavras uma confissão, referências a um filho e a uma mulher ausentes. Algo lhes aconteceu. O quê? Matou-os? Abandonou-os? Foi abandonado? Talvez nada disto seja especialmente relevante se nos concentrarmos apenas na sua solidão, ele é a personificação da solidão em que cada indivíduo se encontra encerrado no limite da sua existência.
   Dizia E. M. Cioran: «A solidão, no seu estádio extremo, exige uma forma de conversa, também ela extrema.» É esta forma de conversa o que se coloca em cena. Entregue a si mesmo, a próprio personagem é o outro fragmentado com o qual estabelecemos um contrato de ouvintes. Por vezes apetece-nos reagir, questioná-lo, responder-lhe às perguntas que nos dirige, são momentos sublinhados por subtis reacções do actor a breves e ligeiros ruídos vindos da sala: uma cadeira que range, o roçagar dos casacos, a respiração. Deixamos de ser ouvintes passivos para nos transformarmos, sem que nada o fizesse prever, em intervenientes num diálogo pautado pelo silêncio. O nosso e o da mulher e do filho que ressoam na memória daquele homem como os sinais da nossa presença na sala.
   Curiosíssimo intróito num espectáculo intitulado “Laços”. As duas peças que se seguem ao monólogo inicial foram montadas numa espécie de engrenagem justificada pelo tópico comum da família monoparental. Se por um lado temos um pai em vias de se separar do filho deficiente, por outro temos uma mãe que recupera a filha há anos ao cuidado de uma família de acolhimento. São histórias nessa vertente poética de certo realismo empenhado em relevar traumas caseiros, comoventes a ponto de a espaços correrem o risco de resvalar para a exposição de uma sentimentalidade fetichista, menos sóbria e discreta do que o desejável. Isto sucede sobretudo na história do pai com o filho deficiente, muito por culpa de uma situação em si mesma fortemente intensa do ponto de vista emocional: um pai com cancro vê-se na impossibilidade de cuidar do filho deficiente sem ter a quem entregá-lo, restando-lhe apenas a hipótese de o abandonar.
   Se o modo como as duas peças se articulam justifica a sugestão de uma interligação, nem por isso aquilo a que assistimos escapa à condição de vidas paralelas. A tentação de as juntar é forte, sendo que a dado momento ocorrem-nos possibilidades de contacto entre as personagens das duas histórias. Esses contactos existem de um modo superficial, regulado por esgares que conservam distâncias e uma desvinculação que nunca chega a ser ultrapassada. Creio que tanto no monólogo, como nos casos do pai em vias de abandonar o filho e da mãe que recupera a filha, o que mais sobressai é essa condição existencial de gente entregue a si mesma, desamparada, presa a laços inquebráveis que são os das raízes a partir das quais cada vida desponta, se constrói e se cumpre.

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