Penso em Ruy Belo, na problemática do
regresso explorada logo em “Aquele Grande Rio Eufrates” (1961), tão belamente revelada
em dois versos de “Segunda Infância”: «Regresso recém-nascido ao teu regaço / minha
mais funda infância meu paul». No poeta, o regresso é a constatação de uma impossibilidade.
Nem o passado volta, nem nós o retomamos a não ser pela memória, estômago do
tempo que tudo converte em meras representações, em reflexos. O regresso de Ruy
Belo é à aldeia que não existe, ele viaja na barcaça da nostalgia rumo ao
irrecuperável. Está, de certa forma, nos antípodas do regresso heróico de Odisseu
a Ítaca. Porque Ítaca ainda o espera. O regresso dos heróis implica uma viagem
no espaço, não é apenas uma viagem no tempo.
Mas e se nem espaço nem tempo determinassem as coordenadas da jornada? Poderá haver um outro tipo de regresso que não se cinja às demarcações determinadas pelo tempo e pelo espaço? Creio ser este um dos desafios mais estimulantes que nos é feito por uma peça como “Ajax, Regresso(s)” (Companhia das Ilhas/Teatro da Rainha, Março de 2023), pensarmos a hipótese do retorno para lá de um tempo e de um espaço concretos, históricos, definíveis.
Na primeira badana fala-se de um texto inédito que tem aqui a sua primeira edição, segundo volume de Jean-Pierre Sarrazac a constar na série mundo da colecção azulcobalto. O primeiro reunia as peças “A Paixão do Jardineiro” e “Neo, Três Painéis de Apocalipse”. Tanto quanto sabemos, o texto de “Ajax, Regresso(s)” foi concebido durante a Guerra da Bósnia. Podia ser hoje, a propósito da Ucrânia ou do Iémen. Podia ser, desde há vários anos, a propósito da Palestina. A guerra não nos larga, está na fundação do ocidente na epopeia homérica, está no mais antigo poema épico da Mesopotâmia, o “Épico de Gilgameš”, está em sânscrito no “Poema do Senhor”, a “Bhagavad-Guitá”. Daqui se vê quanto de universal há no tema, universal no tempo e universal no espaço.
O nome de Ajax é-nos, no entanto, familiar. Cruzámo-nos com ele na “Ilíada”. Filho de Télamon que de Salamina conduziu doze naus, Ájax é o melhor dos comandantes a combater ao lado de Odisseu e de Agamémnon. Na peça de Sarrazac ele é já outra coisa. Se quisermos pensar esta peça à luz de uma revisitação fragmentária da epopeia, incorremos no erro crasso de lhe usurpar a dimensão expiatória e elegíaca que recusa qualquer tipo de heroísmo num cenário de ruínas geradas pela guerra. Este Ajax que tenta regressar à sua aldeia, curiosamente também uma aldeia que já não existe, embora por razões diferentes das que asseveram a inexistência da aldeia de Ruy Belo, este Ajax não tem uma mulher à sua espera nem um cão que o reconheça. Antes pelo contrário. O que ele vai encontrar é um leito de cinzas e uma paisagem de desolação exterior que materializa a sua íntima desumanização, a sua identidade estilhaçada a ponto de nem o próprio nome conseguir pronunciar. Também o seu nome são estilhaços.
Portanto, durante toda a peça Ajax é “o homem jovem”. E com ele interage “a mulher jovem”. E entre ambos escutam-se vozes, omnipresentes como os deuses na epopeia, mas já não omniscientes, também elas ecos de um Olimpo devastado. Vozes da consciência? Certamente. Mas mais do que isso, são a dor fantasma que na realidade existe e pela ficção adquire substância. Neste sentido, o Ajax do título pode muito bem ser interpretado como as sobras de uma matriz civilizacional, cultural, que séculos de conflitos e de guerras vêm relegando a uma condição de miséria. Isso mesmo depreendemos de uma das falas iniciais da Mulher Jovem: «Será que ignoras que esta é uma aldeia morta, que esta região é uma região morta, que neste país feito há séculos e séculos de pedaços desunidos já nada está de pé?» (p. 28)
Não deixa de ser curioso o facto de as duas personagens serem sinalizadas pela sua juventude. Talvez isso se deva a um sinal de esperança que não é alheio ao texto, pois tanto no militar que regressa à aldeia como na mulher que na aldeia se encontra isolada existe esse desejo de regressar a uma vida comum. Os regressos são tanto o dele, que procura retomar a vida que deixou para trás, libertando-se da loucura que o aniquila (tão sabiamente explorada por Sófocles na tragédia “Ájax”), como o dela, vítima de uma guerra que a legou ao abandono e lhe incrustou as dores do medo na carne. Perseguidos pelo passado, buscam motivos para um projecto de futuro.
Afirma Fernando Mora Ramos, no prefácio, haver em Sarrazac uma «predilecção pelo íntimo», algo que nesta peça me parece paradoxalmente sublinhado pelo recurso às vozes como uma espécie de terceira personagem, um terceiro que são múltiplos terceiros metamorfoseando-se, pois as vozes exigirão ressonâncias e tons diversos. É nesse coro de vozes que melhor se consubstancia, a meu ver, a intimidade do Homem Jovem e da Mulher Jovem, uma intimidade que nos chega como um eco, pois se há característica que define as duas personagens é a sua despersonalização. Neste sentido em que (a)parecem num limbo, isto é, num lugar intermédio entre a condição dos mortais e a dos deuses. Os regressos que aqui se jogam abrem pois duas possibilidades: o do regresso à morte e o do regresso à vida. O que pessoalmente me toca mais é o facto de em ambos os casos, não a memória, mas o esquecimento, surgir como condição sine qua non para o regresso. Diz ele: «Quero dormir. Dormir. Esquecer» (p. 58). Diz ela: «A minha memória impedia-me de existir» (p. 68).
Mas e se nem espaço nem tempo determinassem as coordenadas da jornada? Poderá haver um outro tipo de regresso que não se cinja às demarcações determinadas pelo tempo e pelo espaço? Creio ser este um dos desafios mais estimulantes que nos é feito por uma peça como “Ajax, Regresso(s)” (Companhia das Ilhas/Teatro da Rainha, Março de 2023), pensarmos a hipótese do retorno para lá de um tempo e de um espaço concretos, históricos, definíveis.
Na primeira badana fala-se de um texto inédito que tem aqui a sua primeira edição, segundo volume de Jean-Pierre Sarrazac a constar na série mundo da colecção azulcobalto. O primeiro reunia as peças “A Paixão do Jardineiro” e “Neo, Três Painéis de Apocalipse”. Tanto quanto sabemos, o texto de “Ajax, Regresso(s)” foi concebido durante a Guerra da Bósnia. Podia ser hoje, a propósito da Ucrânia ou do Iémen. Podia ser, desde há vários anos, a propósito da Palestina. A guerra não nos larga, está na fundação do ocidente na epopeia homérica, está no mais antigo poema épico da Mesopotâmia, o “Épico de Gilgameš”, está em sânscrito no “Poema do Senhor”, a “Bhagavad-Guitá”. Daqui se vê quanto de universal há no tema, universal no tempo e universal no espaço.
O nome de Ajax é-nos, no entanto, familiar. Cruzámo-nos com ele na “Ilíada”. Filho de Télamon que de Salamina conduziu doze naus, Ájax é o melhor dos comandantes a combater ao lado de Odisseu e de Agamémnon. Na peça de Sarrazac ele é já outra coisa. Se quisermos pensar esta peça à luz de uma revisitação fragmentária da epopeia, incorremos no erro crasso de lhe usurpar a dimensão expiatória e elegíaca que recusa qualquer tipo de heroísmo num cenário de ruínas geradas pela guerra. Este Ajax que tenta regressar à sua aldeia, curiosamente também uma aldeia que já não existe, embora por razões diferentes das que asseveram a inexistência da aldeia de Ruy Belo, este Ajax não tem uma mulher à sua espera nem um cão que o reconheça. Antes pelo contrário. O que ele vai encontrar é um leito de cinzas e uma paisagem de desolação exterior que materializa a sua íntima desumanização, a sua identidade estilhaçada a ponto de nem o próprio nome conseguir pronunciar. Também o seu nome são estilhaços.
Portanto, durante toda a peça Ajax é “o homem jovem”. E com ele interage “a mulher jovem”. E entre ambos escutam-se vozes, omnipresentes como os deuses na epopeia, mas já não omniscientes, também elas ecos de um Olimpo devastado. Vozes da consciência? Certamente. Mas mais do que isso, são a dor fantasma que na realidade existe e pela ficção adquire substância. Neste sentido, o Ajax do título pode muito bem ser interpretado como as sobras de uma matriz civilizacional, cultural, que séculos de conflitos e de guerras vêm relegando a uma condição de miséria. Isso mesmo depreendemos de uma das falas iniciais da Mulher Jovem: «Será que ignoras que esta é uma aldeia morta, que esta região é uma região morta, que neste país feito há séculos e séculos de pedaços desunidos já nada está de pé?» (p. 28)
Não deixa de ser curioso o facto de as duas personagens serem sinalizadas pela sua juventude. Talvez isso se deva a um sinal de esperança que não é alheio ao texto, pois tanto no militar que regressa à aldeia como na mulher que na aldeia se encontra isolada existe esse desejo de regressar a uma vida comum. Os regressos são tanto o dele, que procura retomar a vida que deixou para trás, libertando-se da loucura que o aniquila (tão sabiamente explorada por Sófocles na tragédia “Ájax”), como o dela, vítima de uma guerra que a legou ao abandono e lhe incrustou as dores do medo na carne. Perseguidos pelo passado, buscam motivos para um projecto de futuro.
Afirma Fernando Mora Ramos, no prefácio, haver em Sarrazac uma «predilecção pelo íntimo», algo que nesta peça me parece paradoxalmente sublinhado pelo recurso às vozes como uma espécie de terceira personagem, um terceiro que são múltiplos terceiros metamorfoseando-se, pois as vozes exigirão ressonâncias e tons diversos. É nesse coro de vozes que melhor se consubstancia, a meu ver, a intimidade do Homem Jovem e da Mulher Jovem, uma intimidade que nos chega como um eco, pois se há característica que define as duas personagens é a sua despersonalização. Neste sentido em que (a)parecem num limbo, isto é, num lugar intermédio entre a condição dos mortais e a dos deuses. Os regressos que aqui se jogam abrem pois duas possibilidades: o do regresso à morte e o do regresso à vida. O que pessoalmente me toca mais é o facto de em ambos os casos, não a memória, mas o esquecimento, surgir como condição sine qua non para o regresso. Diz ele: «Quero dormir. Dormir. Esquecer» (p. 58). Diz ela: «A minha memória impedia-me de existir» (p. 68).
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