quarta-feira, 15 de março de 2023

A GUERRA PODE SER MUITA COISA

 


Apanhadas à socapa durante um ensaio, estas páginas anotadas pela actriz em cena. Sublinhados e uma proliferação de apontamentos que reflectem horas e mais horas de trabalho sobre as palavras proferidas. A busca de sentido para cada uma delas, exame que perscruta o tom certo para a acção latente no texto escrito. Fascinante processo, a fazer-me lembrar "A Lição de Anatomia do Dr. Tulp". O texto é o corpo à volta do qual a trupe se move em incansáveis exames e investigações. E o mais curioso para mim, que escrevo, é poder verificar, ter esse privilégio de poder verificar no local do crime, como esse trabalho aclara o que julgávamos fixo e evidente. Li "Ajax, Regresso(s)" dezenas de vezes, mas só já no final, depois de muitas horas dedicadas ao gozo hermenêutico que é o do leitor, é que vislumbrei um sentido para o que lia, um sentido ao qual não chegaria sem o que me foi dado ver, um sentido para o lido construído a partir do visto. A encenação do Fernando e o trabalho com os actores tornaram possível a descoberta, uma espécie de revelação. Dizia à Ana, que comigo viu a peça, sentir agora que aquele regresso de Ájax, personagem oriunda da fundação de uma civilização, a nossa, aquele regresso é uma assombração. No fundo tudo se passa na cabeça da mulher, a mulher jovem, sem nome, a mulher a quem ainda sobra futuro, um futuro dependente de uma espécie de exorcismo das memórias. Ela foi violada em grupo, viu a sua aldeia ser arruinada, o lar transformado em cinzas. O que lhe resta senão expurgar da memória os fantasmas que a visitam? A sua libertação, o seu regresso à vida, está dependente dessa capacidade que consiste em arrumar memórias compreendendo-as. Isso apenas é possível no terreno de uma intimidade que nos coloca frente a frente com o passado, duelo que nos permita vencer os demónios que nos atormentam na intimidade. Isto é válido para tudo quanto seja experiência traumática. Na peça de Sarrazac, o pano de fundo é a guerra. Mas a guerra pode ser muita coisa.

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