Esta noite sonhei que era uma estátua. Tinha a expressividade do busto Ronaldo no aeroporto da Madeira, assombrado de espanto com aterragens e deslocamentos. O meu próprio rosto deslocado no queixo, partido no nariz, com um torcicolo no pescoço e olhos cegos de turismo. Ah, o turismo, o pão nosso de cada dia que nos há-de empanturrar como ao peixinho laranja da infância a boiar em águas paradas de papo para o ar. Só não sei se a cara de parvo era de estar onde estava sem poder sair ou de me pensar para sempre ali embustado em atracção smartphónica para selfies com charters de chineses. Era uma estátua imponente, dorso colossal de Guterres em Vizela, nossa Madre Teresa de calças com Melícias no bolso e muito amor para distribuir pelos corações carentes. Tinha eu, assim estancado em toneladas de bronze adjudicado por ajuste directo, o perfil dos grandes estadistas que desde o Antigo Egipto miram horizontes de paz rodeados de famintos, mendigos, escravos, miseráveis, desgraçados, indigentes sem história porque a história não reza por vítimas anónimas. Prefere mártires da aritmética como Guterres. Eu transformado em estátua, portanto, no país das estátuas. Ao Parque dos Poetas prefiro a Foda dos Nus, sempre vou adiantando que tem mais poesia. Eu era uma estátua com a expressividade eternizada do Ruy e da Eunice Ferreira Leite na Praça Guilherme Gomes Fernandes, que também há-de ter a sua estátua para que os pombos possam aliviar-se com estética e dignidade. Uma parelha de actores, portanto, como que dançando na Praça sem moverem um músculo. Ó destino, que bom ser estátua e não ter de sentir esta estatuária toda disseminada pela nação como uma praga. Foi um bom sonho, sentir-me de pedra, de mármore, de aço, de bronze, sentir-me eternamente parado no tempo quieto e sossegado da mortandade. Esta mania das estátuas, este culto da glorificação, esta tendência para fixar e estagnar e paralisar e tornar inerte ainda há-de fazer de nós uma grande nação. O Quinto Império dos imóveis, com excrementos de pombo na tola e mijo de turistas bêbados nos pés. Regados pela urina dos turistas, floresceremos viçosos como estátuas. Haja esperança.
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