segunda-feira, 13 de março de 2023

‘ROUND MIDNIGHT (1947)

 


Para o JPC, que anda lá nas nuvens.
 
Olha lá, tens poemas com nuvens? Que raio de pergunta, meu, tudo quanto escrevo está envolto em nuvens. Se me lesses, saberias que cada letra saída destas mãos é uma partícula suspensa no pensamento e que o pensamento é a atmosfera onde trovejam ideias que por vezes dão luz como relâmpagos, noutras ocasiões fertilizam rostos como lágrimas, por vezes destroem tudo como granizo. Ah, as palavras, pedras abstractas com peso e medida. A gente atira-as à água para ver formarem-se círculos em que mergulhados os olhos descansam, a gente arremessa-as contra os inimigos esperando feri-los, a gente di-las da boca para fora envolvendo-as logo de seguida numa nuvem de fumo arrependido. Poemas com nuvens? Mas tu és maluco? Todo eu sou uma nuvem a dançar ‘Round Midnight com bandos de aves migratórias insatisfeitas, inquietas, deslocando-se de um lado para o outro por não ficarem bem em lugar nenhum. Sim, tenho poemas com nuvens. Toma lá de presente esta que tirei agora do bolso a pensar em ti, monta-te nela como o Senhor cavalgando à entrada do Egipto e zarpa para dentro de uma nuvem no interior doutra nuvem até ao imo da nuvem primeira. Eu tenho mais que fazer, ainda há para aí muita garrafa a pedir socorro.

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