Domingo (aos amigos)
Distraidamente esta manhã saí de casa
sem o habitual caderninho de bolso
(feito de várias folhas de papel de rascunho dobradas)
acontece-me ter ideias enquanto corro
ou caminho pela floresta
... então paro e anoto
Para auxiliar a memória
substitui este artefacto juntando pauzinhos
cada um representando uma pessoa
a quem gostaria de telefonar neste domingo
eram seis
Também juntei três pedrinhas
cada uma delas representava
um verso de um haiku
que encontrei num cruzamento
Um bugalho representando
um contributo para um trabalho de pesquisa
a que gostaria de me dedicar no futuro
Depois encontrei um quartzito de arestas bem vincadas
este pareceu-me belo e bem dimensionado
para ser levado para casa
um quartzito que reflectia o sol no bolso
pareceu-me bom para guardar na mesinha de cabeceira
afinal era a imagem da minha vida enrugada
(um pastorinho que saiu de casa dos pais
aos onze anos e tem andado pelo mundo
a polir a existência)
todas as noites lhe daria dois minutos de polimento
Na volta trazia os bolsos cheios de fragmentos de
miudezas
(pequenos nadas...
... serei sempre um coleccionador de destroços)
Ao atravessar a estrada vi um sapo morto espalmado
e esqueci quase tudo
Esqueci os nomes dos amigos a quem iria telefonar
esqueci o poema em forma de haiku
(procurando bem ainda encontrei este verso
— O Sol ergueu-se na concha da mão)
Afinal a única coisa a que eu gostaria de dar vida
era ao sapo
lamentei não ser feiticeiro para devolvê-lo à vida.
Manuel Silva-Terra, in Estado Poético, Eufeme, Fevereiro de 2023, pp. 93-94.
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