30. A JÓIA DO VINHO
(Sem Esquecer os Sentimentos do Café)
Hipnotizante sabor a brilho madrugada.
Entre os dedos a flûte de loucura a brilhar no pescoço
ornado com pérolas gotejantes de champagne,
não consigo pensar em nada, agora que o desejo quase
te aflora a temperatura da mão no olhar. As gotas
ferem-me como se fosse o próprio gelo, ou talvez te ame
demasiado e atire para fora de nós o sentimento: desejo
tinto do corpo tímido do vinho aguardando o momento
exacto de tocar os lábios vermelho Dior ou rosé
desvanecendo o rubor de jóias preciosas ou de um beijo
flambé de cores que partem do pescoço até aos seios
de merengue branco: aperitivo na entrada em cena
o primeiro fulgor do corpo num lençol de seda,
a pulseira crepitando no pulso ainda quente
com que me tocas o dorso como se fosse indiferente
este gesto, ou talvez. E no grand finale um Porto —
vintage com certeza — digo pelo estremecer do vestido
quando o líquido perpassa a boca, a língua crua
reduzida ao desejo do próximo gole. O decote
alonga-se em prazer contido, ou sou eu que sonho que
pelo teu cabelo passa um anel solar e do ouro se
desprende uma madeixa. Como este amor intranquilo
deve parecer fútil à gente que passa lá fora com horário
nas pernas e um bocado de míngua a levar à boca.
Eu sei que também amam mas o vinho é outro e tão
corrente! Os homens que vêm e vão para o trabalho
pela rua que corre sob este prédio luxuoso e alvo
amam do mesmo amor outras mulheres que talvez
passem debaixo da varanda e se cruzem meigamente
nesse amor estafado. Até o desenho do rótulo que veste
a garrafa é o testemunho de que há alto e rente ao chão
mas a injustiça perene não se sente sempre
que esperamos um sinal palpável como a chávena
quente aproximando-se das narinas inquietas
por este aroma que arrepia o corpo: o café exala
sentimentos, promete texturas voluptuosas até ao
último olhar, depois do diamante eterno numa gota.
Rosa Alice Branco, in Traçar um nome no coração do branco, Assírio & Alvim, Maio de 2018, pp. 56-57.
Sem comentários:
Enviar um comentário