domingo, 26 de março de 2023

OBRA POÉTICA DE JOSÉ AFONSO

 


Devo ter todas as antologias da poesia portuguesa publicadas nos últimos 55 anos (estou a pensar a partir das “Líricas Portuguesas” de Cabral do Nascimento, editada em 1967), em nenhuma delas encontro um poema de José Afonso (1929-1987). Fiquei ontem a saber que lá aparece um poema numa antologia de poemas políticos (“Às vezes são precisas rimas destas – Poesia Política Portuguesa e de Expressão Alemã”, organizada por João Barrento, Helena Topa, Joachim Sartorius e Fernando J. B. Martinho), demasiado curto para um poeta que não se circunscreve de todo a essa dimensão social que as canções popularizaram. Mesmo nas canções José Afonso foi muito mais do que um poeta político ou de intervenção, expressões que uso não por concordar com elas mas para simplificar o discurso. Basta pensarmos em canções tais como “O Avô Cavernoso”, “Era um Redondo Vocábulo” ou “Paz Poeta e Pombas” para percebermos o que nas suas palavras transcende o engajamento ideológico e a forma tradicional da canção. Atentas ao mundo, não prescindindo dessa atenção, essas canções reflectem uma intimidade que vislumbra nas palavras um modo de libertação muito mais próximo da expressão surrealista do que dos realismos e naturalismos e outros ismos circunscritíveis da linguagem poética.
 
O desconcerto do mundo aparece nesta poesia como já aparecia em Sá de Miranda, sendo até curioso o modo como também aqui a simplicidade dos mais vulneráveis é o centro a partir do qual se erige uma poética de testemunho das misérias e denúncia das humilhações. Os poemas de José Afonso prestam especial atenção a essas figuras, chamando-as para dentro dos poemas com referência a nomes pessoais, mas jamais se deixam capturar pelo sentimentalismo bafiento e por uma qualquer emotividade sensacionalista. São o oposto exacto disso, como nessa “Teresa Torga” que dançando nua na rua serve a denúncia do oportunismo de um tal fotógrafo António Capela. A sociedade do espectáculo no Portugal de 76. Se assim já é nas canções, nos chamados poemas não musicados é-o ainda mais com o aditivo de uma dimensão lírica que parece oscilar entre o sonho e a realidade, entre a loucura e a normalidade, entre o delírio e a lucidez, numa liberdade de associações vocabulares que, no fundo, corresponde à ideia do poeta como representante por excelência de um pensamento desagrilhoado, desempoeirado, desfeito de preconceitos, ideias feitas, estereótipos, lugares comuns.
 
Ao lermos a “Obra Poética” (Relógio D’Água, Dezembro de 2022) recentemente organizada, prefaciada e anotada por Jorge Abegão, deparamos com uma poesia dramática no sentido em que nos coloca como espectadores de um conflito permanente do eu com o mundo, uma poesia em que o erudito se mistura com o popular através de enxertos de ditos, provérbios e quadras provenientes da tradição oral. A riqueza da linguagem plurilingue denota uma geografia diversificada, enraizada numa noção de lusofonia que se opõe a formas forçadas de aculturação. Este respeito pela diversidade congrega, não uniformiza.
 
Por tudo isto parece-me deplorável que o chamado cânone literário continue a olhar de viés uma obra poética como a de José Afonso. As pessoas que o conhecem apenas das canções deviam meter os olhos em poemas como “O Triângulo e a Limalha” (1959) ou “De que lado se faz noite?” (1960) ou “Olhai o nardo e a cicuta” ou “Fui ao enterro de um leão” ou “Por um momento me fui habituando” ou neste “És Livre”: «És livre / Vais ter assunto para uma efeméride / Como se babam / Como se apascentam / os olhos das doninhas? Alguém tosse / Alguém trespassa as varas da loucura.»
 
Elfriede Engelmayer sugeriu em tempos uma organização da poesia de José Afonso em três fases: a edição de “Cantares” em 1966, os poemas da prisão (cerca de 20, escritos em Caxias no ano de 1973) e os poemas dos anos 80, especialmente marcados pelo combate travado com a morte (os primeiros sintomas da doença que o vitimou datam de 1982). É uma forma possível de organização de uma poética dispersa que tem vivido na sombra da popularidade do cantor, conquanto aceitemos que em toda a poesia de José Afonso, musicada ou não, o que mais sobressai é a edificação de um lugar de encontro entre o diverso, um lugar plural, de liberdade, antielitista, e por isso mesmo tingido de contrastes, paradoxos, até absurdos nesse sentido existencialista e humanista que José Afonso bem conhecia (a sua tese de licenciatura foi sobre Sartre). Pelo menos é isso que eu encontro num poema como aquele que a seguir se transcreve:
 
POR UM MOMENTO ME FUI HABITUANDO
 
Por um momento me fui habituando
Ou quase me pareceu habituar-me
Ao peso duma estátua jacente com turbante
Sabia que não era coisa que prestasse
fecho que corresse como se numa sala entrasse
Eu deito-me sempre confiante
à espera do voo dum mosquito
ou doutra metamorfose amável e ruidosa
Capaz de despertar em torno um ruído morno
Mas sei que a partida não chega nem o sinal
nem um dedo se move nem um mocho cantante
Não vem o silêncio sentar-se à minha mesa
A vizinha dorme o aparelho medita
tu habitualmente só, escreves à família
o candeeiro, as horas de Maria
O país conhece a autópsia do dia
Amanhã o ruído das crianças interrompe-me o sono
Ausenta-se a firmeza do facto
               Sigo-lhe a cadência, a lavra costumeira
era ali o apeadeiro debruçado sobre o mundo
Uma rosa garrida no canto da janela
Eu queria romper este encanto canto
encher de pintassilgos a estrada
comover-me de novo ao passar da ribeirinha
Um amigo telefona-me. Convida-me à urgência
        de chegar a compasso ao centro do ruído
 
Hoje não saio. Sinto-me perdido.

2 comentários:

armandina maia disse...

Aqui está, sem hesitação académica nem laivos de proposta de leitura refém de premissas estáticas, o verdadeiro coração que mora na poesia de José Afonso.

Por ser tão amplo o seu saber, e tão grandiosa a sua capacidade de o transpor para a música(sem sombra de tratamento diferenciado), J.Afonso aparece neste texto como um construtor sábio de uma obra que poderia muito bem ocupar um lugar de honra entre as melhores da cultura portuguesa.

Precisamente, este texto liga como coisa inevitável, os vários saberes presentes em Zeca Afonso, o que confere um estatuto muito acima das vulgaridades com que se qualifica uma vida sem paralelo. Obrigada e Parabéns!

Anónimo disse...

Obrigado Armandina. Abraço.