domingo, 28 de abril de 2024

A PROSA DE VIRGÍLIO MARTINHO

 


 
   Na carreta puxada a duas mulas vinha o meu primo Cristóvão, irmão do Antoninho que era da minha matula. Vinha de pés para a frente desde a morgue de Lisboa e nós vínhamos atrás dele. Eu de fumo no braço e de laço preto ao pescoço, o velho pai ferroviário de luto inteiro, como um risco ali no cortejo, a mãe enfermeira chorando por todos nós debaixo da sua matilha negra. E mais gente do Barreiro, incluindo o nosso tio-avô Palrão, que a primeira coisa que fazia ao levantar-se da cama era pôr o chapéu, talvez porque só assim se sentia acordado. Vínhamos tristes e sérios pois aquilo fora um choque, um acidente dos diabos, daquelas coisas injustas que acontecem no mundo e fazem descrer de Deus. O ramo do salgueiro meteu-se na guarda do gatilho e fez disparar a arma do primo Cristóvão, matando-o ali mesmo na Praia dos Moinhos, nosso território de caça e daí em diante sítio de morte, como disse mais tarde a matula entre lamentosa e entusiasmada. Lamentosa porque um de nós morrerá, entusiasmada por causa da comida do Antoninho, pela sua desesperada tentativa em transportar o irmão ferido às costas, sem forças porém para isso, não passava de uma criança. Então, com a mesma determinação vendo que não o podia levar, sem uma lágrima, de punhos e dentes cerrados, correu o quilómetro e meio de estrada que o separava do posto da CUF em demanda de socorro, como ninguém o vira correr, uma seta, disse depois o Zé-Boi, um vento, acrescentara o Nhau, o grego da Maratona, dizemos nós. E cheio de sangue do irmão na cabeça, nas mãos, a rebentar de cansaço, mas sem desistir, lá chegou, ferido também, não de ferida, dentro de si, no seu fundo. E tanto que durante meses não pronunciou uma palavra, não quis ver ninguém, como se fosse ele o ramo do salgueiro, como se a força que não tivera para levar o irmão ao posto fosse premeditada e não carência. A ambulância branca veio e levou o primo Cristóvão ao hospital de Lisboa, e nós ouvimos-lhe a sirene durante muito tempo, ficou-nos no ouvido. Dias depois vi-o na sala de pedra da morgue, metido na sua caixa de pinho, entre rendas e flores, de olhos fechados, ele que os tinha negros e reluzentes, imóvel ali, com as mãos embranquecidas cruzadas sobre o peito, cumprindo a sua postura de morto. E no meu nariz o cheiro dele, o cheiro da sua morte. Enquanto à sua volta, como grandes corvos, os adultos iam mastigando palavras, contando histórias tristes, jogando com as contas dos rosários. Também choravam. A certa altura fecharam a caixa e meteram-na num carro fúnebre que o levou ao Terreiro do Paço, ao rebocador de esguia chaminé que se chamava Vitória. Depois a viagem marítima de todos nós com ele, as ondas ora verdes ora espumantes. E já no Barreiro o cortejo, os corvos, os rosários, as histórias tristes, de negro todos, cinzenta porém a carreta, porque o primo Cristóvão ainda não merecia o preto, era apenas um jovem no seu último andamento sobre rodas. Chegados à Praça Nova, a tragédia antiga da nossa tia-avó Palroa, os gritos que vinham do buraco sem dentes que era a sua boca, as lágrimas escorrendo-lhe em fio das covas dos olhos. Depois a mãe do defunto, coberta de luto, vulto ceroso cheio do silêncio de quem culpa. E súbito, entre tudo isto, o mijo de uma das mulas que puxava a carreta deslizando fumegante da estrada para a sarjeta. Um quilómetro após o cemitério, a caixa de pinho levada por quatro adultos, a cerimónia religiosa na capela, os soluços, os uivos, os ais, e como final de acto a pá do coveiro, a terra. Consumada a viagem, o meu regresso solitário à estrada entre o Lavradio e o Barreiro, vendo a minha esguia sombra a andar comigo, as biqueiras agora sujas dos sapatos, sentindo dentro deles os pés vivos e sensíveis, base da minha locomoção, do meu estar entre vivos.
 
Virgílio Martinho, in Relógio de Cuco (1973), Obras III, Companhia das Ilhas, Junho de 2023, pp. 73-75.

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