Na carreta puxada a duas mulas vinha o meu primo Cristóvão, irmão
do Antoninho que era da minha matula. Vinha de pés para a frente desde a morgue
de Lisboa e nós vínhamos atrás dele. Eu de fumo no braço e de laço preto ao
pescoço, o velho pai ferroviário de luto inteiro, como um risco ali no cortejo,
a mãe enfermeira chorando por todos nós debaixo da sua matilha negra. E mais
gente do Barreiro, incluindo o nosso tio-avô Palrão, que a primeira coisa que
fazia ao levantar-se da cama era pôr o chapéu, talvez porque só assim se sentia
acordado. Vínhamos tristes e sérios pois aquilo fora um choque, um acidente dos
diabos, daquelas coisas injustas que acontecem no mundo e fazem descrer de
Deus. O ramo do salgueiro meteu-se na guarda do gatilho e fez disparar a arma
do primo Cristóvão, matando-o ali mesmo na Praia dos Moinhos, nosso território
de caça e daí em diante sítio de morte, como disse mais tarde a matula entre
lamentosa e entusiasmada. Lamentosa porque um de nós morrerá, entusiasmada por
causa da comida do Antoninho, pela sua desesperada tentativa em transportar o
irmão ferido às costas, sem forças porém para isso, não passava de uma criança.
Então, com a mesma determinação vendo que não o podia levar, sem uma lágrima,
de punhos e dentes cerrados, correu o quilómetro e meio de estrada que o
separava do posto da CUF em demanda de socorro, como ninguém o vira correr, uma
seta, disse depois o Zé-Boi, um vento, acrescentara o Nhau, o grego da
Maratona, dizemos nós. E cheio de sangue do irmão na cabeça, nas mãos, a
rebentar de cansaço, mas sem desistir, lá chegou, ferido também, não de ferida,
dentro de si, no seu fundo. E tanto que durante meses não pronunciou uma
palavra, não quis ver ninguém, como se fosse ele o ramo do salgueiro, como se a
força que não tivera para levar o irmão ao posto fosse premeditada e não
carência. A ambulância branca veio e levou o primo Cristóvão ao hospital de
Lisboa, e nós ouvimos-lhe a sirene durante muito tempo, ficou-nos no ouvido.
Dias depois vi-o na sala de pedra da morgue, metido na sua caixa de pinho,
entre rendas e flores, de olhos fechados, ele que os tinha negros e reluzentes,
imóvel ali, com as mãos embranquecidas cruzadas sobre o peito, cumprindo a sua
postura de morto. E no meu nariz o cheiro dele, o cheiro da sua morte. Enquanto
à sua volta, como grandes corvos, os adultos iam mastigando palavras, contando
histórias tristes, jogando com as contas dos rosários. Também choravam. A certa
altura fecharam a caixa e meteram-na num carro fúnebre que o levou ao Terreiro
do Paço, ao rebocador de esguia chaminé que se chamava Vitória. Depois a viagem
marítima de todos nós com ele, as ondas ora verdes ora espumantes. E já no Barreiro
o cortejo, os corvos, os rosários, as histórias tristes, de negro todos,
cinzenta porém a carreta, porque o primo Cristóvão ainda não merecia o preto,
era apenas um jovem no seu último andamento sobre rodas. Chegados à Praça Nova,
a tragédia antiga da nossa tia-avó Palroa, os gritos que vinham do buraco sem
dentes que era a sua boca, as lágrimas escorrendo-lhe em fio das covas dos
olhos. Depois a mãe do defunto, coberta de luto, vulto ceroso cheio do silêncio
de quem culpa. E súbito, entre tudo isto, o mijo de uma das mulas que puxava a
carreta deslizando fumegante da estrada para a sarjeta. Um quilómetro após o
cemitério, a caixa de pinho levada por quatro adultos, a cerimónia religiosa na
capela, os soluços, os uivos, os ais, e como final de acto a pá do coveiro, a
terra. Consumada a viagem, o meu regresso solitário à estrada entre o Lavradio
e o Barreiro, vendo a minha esguia sombra a andar comigo, as biqueiras agora
sujas dos sapatos, sentindo dentro deles os pés vivos e sensíveis, base da
minha locomoção, do meu estar entre vivos.
Virgílio Martinho, in Relógio de Cuco (1973), Obras III,
Companhia das Ilhas, Junho de 2023, pp. 73-75.
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