segunda-feira, 22 de abril de 2024

A TRAGÉDIA DE OTELO, O MOURO DE VENEZA

 


BRABÂNCIO
Porque gritais assim tão assustados?
O que se passa?
 
RODRIGO
Signior, estão todos dentro, os da casa?
 
IAGO
As portas estão fechadas?
 
BRABÂNCIO
Mas porquê?
 
IAGO
Senhor, fostes roubado! Ponde roupa.
Forrai o coração para um desgosto:
Está um carneiro preto velho a pôr-se
Na vossa ovelhinha branca neste instante!
Chamai os cidadãos, picai os sinos,
Ou o diabo faz de vós avô.
Pra fora, vá!
 
BRABÂNCIO
O quê? Está tudo doido?
 
RODRIGO
Senhor, reconheceis a minha voz?
 
BRABÂNCIO
Eu não. Quem sois vós?
 
RODRIGO
Sou eu, Rodrigo.
 
BRABÂNCIO
Pois já cá faltava!
Mandei-te pores-te a milhas desta casa.
Parece-me ter sido muito claro:
Esquece a minha filha. Que desplante
Vazares-me aqui à porta os teus maus vinhos,
Armado em fanfarrão, a perturbar
A minha paz!
 
RODRIGO
Senhor, senhor —
 
BRABÂNCIO
Mas podes ter certeza,
Meteste-te co’alguém em posição
De te cobrar bem caro.
 
RODRIGO
Senhor, esperai!
 
BRABÂNCIO
Roubado, que conversa! Isto é Veneza.
Não vivo numa granja.
 
RODRIGO
Bom Brabâncio,
Com toda a estima, venho honestamente —
 
IAGO
Chiça, senhor, sois capaz de vos recusardes servir a Deus, se o diabo quiser. Nós vimos aqui com toda a lealdade, mas preferis meter na cabeça que somos rufias, e isso é mais importante do que ter um cavalo berbere a cobrir-vos a filha. Ides ter netos a nitrir ao pé de vós, puros-sangues, ginetes nos genes!
 
BABÂNCIO
Quem é este ordinário?
 
IAGO
O que vos vem dizer, caro senhor, que a vossa filha e o Mouro andam a brincar à besta de dois costados.
 
BRABÂNCIO
Seu pulha!
 
IAGO
E vós sois um senador!
 
William Shakespeare, in A Tragédia de Otelo, o Mouro de Veneza, tradução de Daniel Jonas, Penguin Clássicos, Maio de 2022, pp. 8-9.

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