sábado, 13 de abril de 2024

PLANETA



 
   A história é contada pelo epistemólogo austríaco Paul Feyrabend (1924-1994) num dos capítulos de “Adeus à Razão” (trad. Maria Georgina Segurado, Edições 70, 1991), dedicado à ideia de progresso na filosofia, nas ciências e nas artes:
 
«(...) Licomedes, discípulo de João, chamou secretamente um pintor a casa daquele e lhe pediu que pintasse um retrato de João. Este descobriu o retrato, mas, por nunca ter visto o seu próprio rosto, não o reconheceu e pensou tratar-se de um ídolo. Licomedes trouxe-lhe um espelho e João, comparando o espelho com o retrato, disse:
Tal como Nosso Senhor Jesus Cristo está vivo, este retrato é igual a mim; no entanto, meu filho, não é igual a mim mas apenas à minha imagem carnal. Pois, se este pintor que aqui imitou o meu rosto o quiser traçar num retrato, ver-se-á em apuros [precisando de mais do que] as cores, que agora vês e as tábuas… e a posição da minha forma e a velhice e a juventude e todas as coisas que se vêem com os olhos.
Mas tu, Licomedes, deverias tornar-te um bom pintor para mim. Tens as cores que ele te dá através de mim, ele, que pessoalmente nos pinta a todos, mesmo Jesus, que conhece as formas e o aspecto e as posturas e os tipos das nossas almas. Mas o que aqui fizeste é infantil e imperfeito: traçaste a semelhança perfeita dos mortos.»
 
   É curioso que um filósofo de inclinação anarquista, para quem a filosofia pode ser tratada como uma arte que trabalha com pensamentos, se sirva deste exemplo como sustentação dos limites do realismo óptico, o qual, nas palavras do próprio, exclui a vida e a alma. É um problema que se coloca também à poesia, o dos limites da representação de um objecto. Sucede que a poesia, enquanto arte da língua cujo material são as palavras, oferece-nos, ao contrário da ciência e até da filosofia, possibilidades de sentido que não estão dependentes do raciocínio lógico. Vem isto a propósito da leitura de dois livros recentes de José Ricardo Nunes (n. 1964), lançados em simultâneo pela não (edições): “Planeta” e “De Humani Corporis Fabrica”.
   Dedico-me ao primeiro, uma sequência de 48 poemas escritos entre 2018 e 2023. É uma característica deste Autor, a demarcação no tempo dos livros que vai publicando. À semelhança de “Andar a Par” (Tinta da China, 2015), também este oferece um conjunto de poemas numerados, sem título nem datação individual, o que permite supor um trabalho de montagem em benefício de uma organização com um sentido próprio que cabe ao leitor ir construindo do princípio ao fim. E do princípio ao fim apercebemo-nos como também neste volume a problematização do Eu é nuclear nesta poesia, um Eu complexo que se coloca como objecto de exploração, conhecimento, procedendo a essa impossibilidade epistemológica que é a de o sujeito ser ao mesmo tempo objecto, como que saindo de si, afastando-se e distanciando-se de si, para melhor se compreender. O espelho não basta, oferece-nos apenas a imagem carnal, a semelhança perfeita dos mortos.
   Do primeiro ao último poema damos com uma espécie de movimento de rotação da primeira pessoa do singular, o Eu gira, transita, movimenta-se, desloca-se no tempo e no espaço, é o centro a partir do qual os poemas se desenvolvem, na sua relação com o mundo, com os outros, por vezes dirigindo-se directamente a segundas pessoas, como no poema 34 — «E talvez hoje sejas tu / quem escreve este poema» (p. 72) —, noutras ocasiões num processo de desdobramento em terceiras pessoas que contribuem para um estilhaçamento da identidade. Nesse mesmo poema 34, o Eu ronda «como um planeta / vigia a sua estrela» (p. 71), mas já no primeiro poema do livro ele surge-nos «com a força de uma ilha vulcânica / que altera num instante a geografia do planeta, / não a sua essência» (p. 9). Por metonímia ou comparação, podemos fazer equivaler o Planeta ao Eu, ou talvez seja mais correcto falar antes de Ser. Este Ser que emerge como um Planeta em formação é dual na sua própria natureza, respeitando uma longa tradição filosófica e metafísica que o Autor não renega. Atentemo-nos à divisão estabelecida entre geografia e essência, podendo aqui estabelecer-se um equivalente entre corpo (o que muda, o que é contingente e está sujeito ao tempo) e alma (o imutável), divisão essa reforçada pela imagem fortíssima no poema 18 de uma alma que se ejecta do corpo para que o corpo assista à sua queda «tão leve / que nem precisa de pára-quedas» (p. 42).
   Talvez estejamos a avançar mais depressa do que a prudência aconselha. No início do livro encontramos um nome isolado, Paula, seguido de uma vírgula. O Autor dirige-se a alguém em concreto, a quem pretende dizer qualquer coisa. E aquilo que primeiramente diz é uma citação, um verso da IXª Olímpica de Píndaro (trad. António de Castro Caeiro, Abysmo, 2017): «O que vem com o nascimento é o mais poderoso que há.» O que vem com o nascimento é o inato, por oposição ao adquirido. Este verso, mais difícil do que aparenta, deve ser pensado sem 2500 anos de especulação filosófica e de investigação científica. Entre outros, as “Odes Olímpicas” tinham o propósito de tecer louvores aos vencedores, cantar feitos que jamais seriam alcançáveis sem que neles não existisse uma participação dos deuses. O inato está, portanto, ligado a essa ascendência divina do heroísmo. Sem deuses por detrás, não há glória nem heróis. Falava-se de Destino, não de Hereditariedade. Hoje em dia pensamos em Hereditariedade como naquele tempo, de certa forma, se pensava em Destino, se bem que o Destino fosse um agente exterior ao Ser.
   Neste “Planeta” o que vem com o nascimento é inerente ao corpo, um corpo que, descendendo de outros corpos, pode também ele gerar vida, «carne da minha carne», para citar Herberto citado por José Ricardo Nunes. Esta trajectória da ascendência para a descendência é algo que me parece central neste livro, desde logo nos vários poemas em que o Autor evoca as figuras do pai (06, 08, 11, 32, 35, 48), da mãe (08, 14), da irmã (09), da filha (09, 26, 32). Nestas evocações há, quanto a mim, um propósito que não é meramente afectivo, elas correspondem ao movimento rotacional do Ser Planeta cuja estrutura ontológica estes poemas procuram reflectir. A certa altura, sentimo-nos tentados a dividir o livro em blocos, porventura separados pelas fotografias de Pedro Bernardo distribuídas ao longo das páginas. Teríamos um bloco de poemas em que o Eu nos aparece mais isolado, entregue a si mesmo e às suas cogitações quotidianas; temos um outro bloco em que o Eu evoca os Outros Eu a que se liga por consanguinidade; e temos os poemas do Eu Outros, isto é, aqueles em que referências terceiras favorecem um enquadramento e uma localização do Planeta.
   Estes Eu Outros a que me refiro são, em regra, pioneiros da astronáutica (Konstantin Tsiolkovsky - 13), cosmonautas (Gherman Stepanovich Titov - 37), astronautas (Alan Shepard - 15, 16), aviadores (Robert Gregory), montanhistas (Edmund Hillary e Tenzing Norgay), alpinistas (George Mallory – 47), ou seja, gente que ascendeu e descendeu no espaço e no tempo, gente que subiu e desceu, gente que retirou os pés da terra para a poder observá-la com distanciamento e a ela desceu, por certo, com a experiência de um olhar renovado. Esta renovação, ou, se preferirem, ressurreição, está desde logo implícita no início do livro e percorre-o como uma espécie de marca de água: «Posso agora realmente acreditar / que sou mesmo feliz» (p. 98). Parece, portanto, ser esta a condição do sujeito poético, a de alguém que também se desloca no espaço e no tempo, se movimenta, transita, muda, transforma, dando a volta ao mundo por dentro da cabeça, como a certa altura se sugere no poema 22. Um poema exemplar, de resto, no modo como sobrepondo referências em três estrofes — a banda rock Return to Forever, “A Balada do Amor e da Morte do Alferes Cristóvão Rilke”, de Rainer Maria Rilke, e o poeta e dramaturgo Robert Browning — procede a uma trasladação do Outro para o Eu: «Dez pisos me afastam agora de mim, / em luta com raízes» (p. 50).
    As múltiplas referências que encontramos neste livro, os lugares visitados, os filmes vistos, a música escutada, os livros lidos, acompanham o Ser na sua jornada, mas não o condicionam tanto quanto as raízes. As raízes são o que vem com o nascimento e o que vem com o nascimento é o mais poderoso que há. Vislumbramos referências às raízes nos poemas 09: «Pareço o pêndulo que estava na sala / mas agora arrítmico, / sem coordenação motora, raízes / arteriais, não cuidando / que tudo inapelavelmente se torna / pasta de papel» (pp. 26-27). Reaparecem no poema 12: «Associo a primeira vez que morri / às raízes expostas de uma oliveira» (p. 32). Voltam a surgir no poema 28: «E já / o peito do meu pé ia ao encontro / do teu calcanhar, como no poema do Thom Gunn que o Helder traduziu / e publicou no facebook e tão bem calha / para eu não desatar a falar de raízes» (p. 61). E, por fim, estão no poema 48, o último do livro: «Tantas oliveiras arrancadas / que deixaram à beira do caminho / com as raízes viradas para cima» (p. 98). Não poderão estes poemas ser como essas oliveiras arrancadas à terra, com as raízes viradas para cima de modo a tornar visível o que de mais poderoso há?
   O que mais me agrada neste livro é a sensação de movimento que me oferece, este movimento para cima e para baixo, para trás e para a frente, sugestivamente erótico, mesmo quando sabemos não estar senão dentro da cabeça do sujeito poético que, através da poesia, ousa retratar-se para lá da carne. O movimento impresso pelas palavras, esse ritmo, se preferirem, é o que me cativa mais. A ter de fazer-lhe uma crítica, seria a de que esta concepção dual do Ser me aprece ultrapassada. Nos poemas do livro “De Humani Corporis Fabrica” está em síntese tudo quanto nos resta: corpo, um corpo frágil, débil, precário, sujeito à transformação como o Planeta está sujeito às alterações climáticas. Fico, por isso, como a mulher sentada à porta de um café que olha para um ponto que ninguém é capaz de fixar. 
   É uma imagem que se repete no início e no fim de “Planeta”. No poema 06, mais descritivo, não se fala em ponto indefinido como se refere no poema 48. É um ponto que ninguém jamais foi capaz de fixar, isso a que no último poema se chama um ponto indefinido. Creio poder este ponto ser o vazio para que tudo tende, inclusive o olhar. «A Terra é um pequeno ponto no espaço», diz-se no poema 13. Também o Ser é um pequeno ponto no tempo que ninguém consegue definir. O que neste, como noutros livros de José Ricardo Nunes, se coloca em causa é precisamente esta noção de indefinibilidade do Ser. O Ser é um pequeníssimo ponto perdido no tempo e no espaço, no meio de uma multidão que não o alcança, mesmo que com ele se cruze e o condicione. Esta é uma hipótese, a de que entre nós e os grãos de café reduzidos a pó todas as manhãs não exista grande diferença.
 

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