Pensar o resultado final de um livro cuja construção se foi,
de algum modo, acompanhando, é um desafio que deve precaver-se de duas
premissas nem sempre claras: o que conta é o que está; o que não está, mesmo
que ecoe, não deve pesar no juízo sobre o que ficou. Andar a Par
(Tinta-da-China, Maio de 2015), de José Ricardo Nunes (n. 1964), coloca-me esse
desafio. Escutei algumas das primeiras versões destes poemas antes de terem
sido organizados como entretanto chegaram aos leitores. A amizade que me liga
ao autor, assim como o facto de residirmos na mesma cidade, permitiu essa partilha.
E a primeira impressão, que vem da audição dessas primeiras versões e se mantém,
não como um eco, mas como uma confirmação, é a de que este livro marca uma
inflexão na poesia de José Ricardo Nunes. Fosse num registo mais dissimulador
da identidade (conferir Apócrifo), em tom irónico (ver Versos Olímpicos) ou num
exercício exaustivo e esgotante da alteridade (regressar a Compositores do Período Barroco), esta poesia manteve sempre com os aspectos biográficos uma relação
distante. Não os excluindo, como que os sabotava recorrendo a artifícios poéticos
e literários de vários tipos. Neste livro, a máscara como que cai. O
biografismo é declarado, desde logo na dedicatória à filha, adensando, porém,
uma problematização da identidade que já não se esconde por detrás de
personagens que não sejam o próprio autor observando-se reflectido no outro (na
filha, carne de sua carne), no espelho, nas águas. Ao contrário do que estas
primeiras palavras possam fazer pensar, não se trata de narcisismo poético nem
de um ego fechado sobre si próprio. Trata-se de ceder à força da poesia, isto é,
à emoção que rompe uma lógica discursiva, que transcende as limitações do
racional, que se liberta dos grilhões académicos a que tantas vezes o poeta se
sente preso, seja por necessidade de afirmação, seja por determinação de um
superego castrador. A sequência de 23 poemas intitulada Andar a Par mostra um
poeta no perfeito domínio da sua liberdade, o que, por si só, revela um
delicioso paradoxo. Apetece recordar aquela ideia segundo a qual o grande
improvisador é o que domina a técnica na perfeição. Este livro, embora não
seja, na sua essência, um improviso, denota um domínio da técnica que permite
ao autor um discurso muito mais emotivo do que aquele que conhecíamos dos seus
livros anteriores, um discurso já não tão concentrado num racionalismo mais ou
menos crítico da sensibilidade, um discurso solto, espontâneo e, por isso
mesmo, convincente no que respeita à sua autenticidade. A geografia sentimental
que percorre o livro manifesta-se tanto na referência a lugares familiares
(Alcobaça, Foz do Arelho, Salir do Porto, Peniche, Óbidos, Nazaré…), como nas
evocações biográficas e afectivas (a dedicatória à filha, outra aos pais no
poema 4, à irmã e aos sobrinhos no poema 6, à ex-mulher no poema 9). A família
parece ser o ponto fulcral a partir do qual o livro foi crescendo, mas a família
num estado perturbador de desintegração. Curiosa a recorrência a uma ideia de
concordância — «erro de concordância» (p. 23), «Eis uma palavra, paixão, que
merece / concordâncias» (p. 42), «Preces, / sempre, ainda que desinspiradas,
com erros / de concordância» (p. 47) — que nos leva a suspeitar terem sido,
como queria Empédocles, o Amor e a Discórdia os princípios fundadores deste
Universo. Os poemas depuradíssimos dos livros anteriores dão lugar a poemas
longos dentro dos quais vamos descobrindo rimas diversas, algumas até algo
desequilibradas, como que dando a entender haver nestes textos um
desprendimento forçado pela necessidade de dizer. Alguns versos chegam a ser
terríveis no modo como expõem as angústias do sujeito poético: «Ambos sabemos
como custa sofrer e a urgência que há / em cada salvação, lá / ou cá, sofremos
ambos does iguais a essas / dores. Não fosse Inverno no Largo de São Paulo / e
compreenderia que servisses a culpa em doses iguais: / metade para mim, metade
para mim» (p. 11). Outros não resistem a dialogar com poetas facilmente
identificáveis tais como Herberto Helder (poema 5), Mário Cesariny (poema 18)
ou Jorge de Sena (poema 20), mas estes diálogos são sempre contaminados por uma
urgência que torna o diálogo pretexto para algo mais. Ou seja, as evocações desses autores são como
que uma plataforma a partir da qual a ideia do poema se desenvolve. E essa
ideia não tem subjacente tanto o diálogo com o poeta convocado como insinua um diálogo do
sujeito poético consigo mesmo. No fundo, são monólogos acerca da solidão causadores
de cisões num eu que se atreve a pensar, a questionar, a reflectir, a
problematizar a sua própria natureza: «Já não desejo nada para mim, / diz o
protagonista de um filme de Tarkovski. / Homem, cão — que bichos pressentem / a
morte? Volto portanto ao ínvio tema, / subo o rio, em modo repeat / a gravação
e a gravura / a latejar a cada verso meu. Pego no caderno, / olho para longe,
fico à escuta. E peço ao artesão / que aqui me deixou a acalentar o favor / de
concluir em mim o seu trabalho. / Não é em mim que pego, peço / pela criança, que
simplesmente / o bater do coração até ao momento derradeiro / a livre dos
perigos» (p. 54). Excelente livro. Para mim, o melhor do José Ricardo Nunes até à data.
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