sexta-feira, 28 de agosto de 2015

ANDAR A PAR

Pensar o resultado final de um livro cuja construção se foi, de algum modo, acompanhando, é um desafio que deve precaver-se de duas premissas nem sempre claras: o que conta é o que está; o que não está, mesmo que ecoe, não deve pesar no juízo sobre o que ficou. Andar a Par (Tinta-da-China, Maio de 2015), de José Ricardo Nunes (n. 1964), coloca-me esse desafio. Escutei algumas das primeiras versões destes poemas antes de terem sido organizados como entretanto chegaram aos leitores. A amizade que me liga ao autor, assim como o facto de residirmos na mesma cidade, permitiu essa partilha. E a primeira impressão, que vem da audição dessas primeiras versões e se mantém, não como um eco, mas como uma confirmação, é a de que este livro marca uma inflexão na poesia de José Ricardo Nunes. Fosse num registo mais dissimulador da identidade (conferir Apócrifo), em tom irónico (ver Versos Olímpicos) ou num exercício exaustivo e esgotante da alteridade (regressar a Compositores do Período Barroco), esta poesia manteve sempre com os aspectos biográficos uma relação distante. Não os excluindo, como que os sabotava recorrendo a artifícios poéticos e literários de vários tipos. Neste livro, a máscara como que cai. O biografismo é declarado, desde logo na dedicatória à filha, adensando, porém, uma problematização da identidade que já não se esconde por detrás de personagens que não sejam o próprio autor observando-se reflectido no outro (na filha, carne de sua carne), no espelho, nas águas. Ao contrário do que estas primeiras palavras possam fazer pensar, não se trata de narcisismo poético nem de um ego fechado sobre si próprio. Trata-se de ceder à força da poesia, isto é, à emoção que rompe uma lógica discursiva, que transcende as limitações do racional, que se liberta dos grilhões académicos a que tantas vezes o poeta se sente preso, seja por necessidade de afirmação, seja por determinação de um superego castrador. A sequência de 23 poemas intitulada Andar a Par mostra um poeta no perfeito domínio da sua liberdade, o que, por si só, revela um delicioso paradoxo. Apetece recordar aquela ideia segundo a qual o grande improvisador é o que domina a técnica na perfeição. Este livro, embora não seja, na sua essência, um improviso, denota um domínio da técnica que permite ao autor um discurso muito mais emotivo do que aquele que conhecíamos dos seus livros anteriores, um discurso já não tão concentrado num racionalismo mais ou menos crítico da sensibilidade, um discurso solto, espontâneo e, por isso mesmo, convincente no que respeita à sua autenticidade. A geografia sentimental que percorre o livro manifesta-se tanto na referência a lugares familiares (Alcobaça, Foz do Arelho, Salir do Porto, Peniche, Óbidos, Nazaré…), como nas evocações biográficas e afectivas (a dedicatória à filha, outra aos pais no poema 4, à irmã e aos sobrinhos no poema 6, à ex-mulher no poema 9). A família parece ser o ponto fulcral a partir do qual o livro foi crescendo, mas a família num estado perturbador de desintegração. Curiosa a recorrência a uma ideia de concordância — «erro de concordância» (p. 23), «Eis uma palavra, paixão, que merece / concordâncias» (p. 42), «Preces, / sempre, ainda que desinspiradas, com erros / de concordância» (p. 47) — que nos leva a suspeitar terem sido, como queria Empédocles, o Amor e a Discórdia os princípios fundadores deste Universo. Os poemas depuradíssimos dos livros anteriores dão lugar a poemas longos dentro dos quais vamos descobrindo rimas diversas, algumas até algo desequilibradas, como que dando a entender haver nestes textos um desprendimento forçado pela necessidade de dizer. Alguns versos chegam a ser terríveis no modo como expõem as angústias do sujeito poético: «Ambos sabemos como custa sofrer e a urgência que há / em cada salvação, lá / ou cá, sofremos ambos does iguais a essas / dores. Não fosse Inverno no Largo de São Paulo / e compreenderia que servisses a culpa em doses iguais: / metade para mim, metade para mim» (p. 11). Outros não resistem a dialogar com poetas facilmente identificáveis tais como Herberto Helder (poema 5), Mário Cesariny (poema 18) ou Jorge de Sena (poema 20), mas estes diálogos são sempre contaminados por uma urgência que torna o diálogo pretexto para algo mais. Ou seja, as evocações desses autores são como que uma plataforma a partir da qual a ideia do poema se desenvolve. E essa ideia não tem subjacente tanto o diálogo com o poeta convocado como insinua um diálogo do sujeito poético consigo mesmo. No fundo, são monólogos acerca da solidão causadores de cisões num eu que se atreve a pensar, a questionar, a reflectir, a problematizar a sua própria natureza: «Já não desejo nada para mim, / diz o protagonista de um filme de Tarkovski. / Homem, cão — que bichos pressentem / a morte? Volto portanto ao ínvio tema, / subo o rio, em modo repeat / a gravação e a gravura / a latejar a cada verso meu. Pego no caderno, / olho para longe, fico à escuta. E peço ao artesão / que aqui me deixou a acalentar o favor / de concluir em mim o seu trabalho. / Não é em mim que pego, peço / pela criança, que simplesmente / o bater do coração até ao momento derradeiro / a livre dos perigos» (p. 54). Excelente livro. Para mim, o melhor do José Ricardo Nunes até à data. 

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