sexta-feira, 26 de julho de 2024

O CADERNO DO ALGOZ

 


   Quando era pequeno — teria dez, talvez onze anos —, costumava fugir de casa todas as tardes. Fizesse sol ou chuva. Saltava da janela do meu quarto e entrava pelos campos e montes. Descalço. A correr como um galgo. Envolto naquela sensação de liberdade que é correr com os pés descalços. Sentindo nos calcanhares o pulsar da terra, as espigas e as pedras, as ervas, os declives, a humidade e a aspereza; tentando fugir com as canelas às silvas, escapar aos cardos e às urtigas; vendo a velocidade das coisas sem nunca perder o fôlego. E todas as tardes eu fugia e corria na direcção da grande árvore. Ninguém sabia desde quando estava ali. E eu corria para ela. Afugentava os pássaros com a minha fisga. E depois era trepá-la. Nunca até ao cimo, mas o suficiente para me sentir feliz e pequeno perante a grandeza da paisagem e do mundo. Tentei muitas vezes, em vão, abraçá-la: envolvia aquele tronco com os meus braços. Mas os dedos da mão direita nunca encontravam os dedos da mão esquerda. Sofria com isso. E o meu desejo era crescer o suficiente para que um dia pudesse ter braços e mãos suficientes. Sentir-lhe todos os nós e estrias. Levava sempre comigo a fisga no bolso detrás dos calções. Para o que desse e viesse. Depois apontava: puxava o braço atrás, e, num repente, zás, um enxame de pássaros dinamitava o céu. Atirava a silvas, pedras, escaravelhos e formigas. Atirava às flores onde as abelhas fertilizavam as corolas para lhes calar o zumbir. E isto até uma tarde. Lembro-me de na noite anterior ter tido um sonho. Um sonho. Estava parado junto da árvore, com um sol branco a queimar-me a nuca. Quando de repente tudo se precipitou. E da paz veio o ruído. O céu azul deu lugar a um lençol negro. Um vento levantou-se. Ouvi um grito. E de um dos ramos um pássaro despenhou-se. Caiu nas minhas mãos. Estava morno. O bico entreaberto. As batidas do peito perdiam força. Aterrorizado, apertei-o com a força e vontade suficientes para o fazer desaparecer. Mas quanto mais apertava as mãos, mais aquele ser crescia, e com ele a agonia. As penas caíam-lhe como cabelos cansados. Os seus músculos metamorfosearam-se e começaram a crescer desmesuradamente. Toda aquela massa disforme e lêveda que eu não entendia se transformou, a pouco e pouco, numa figura humana: um corpo de menina. 
   Um anjo? O anjo.

Sandro William Junqueira, in O Caderno do Algoz, Editorial Caminho, Fevereiro de 2009, pp. 127-128.

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