sábado, 24 de agosto de 2024

RESPIRAÇÃO SUSPENSA — 9

 (PRIMEIRO DE MAIO DOIS MIL E VINTE: POEMA I)



Nunca me imaginei, na capital do mais antigo país europeu,
com suas fronteiras fixas impostas, irremovíveis
e ainda agora inamovíveis, nascendo
de um filho rebelde à chapada à Mãe,
como o de agora pitoresco presidente da república,
a surrar o pai até à hospitalização sonegada por Salazar,
porque o menino era esquizofrénico, e quiçá «democrático»,
vindo pela geografia abaixo, o rei futuro,
patrioticamente espadeirando mouros,
inaugurando uma xenofobia e um racismo congénitos,
e a pagar bulas opíparas por seus méritos
ao Papa da época e de todos os futuros,
para que se lhe reconhecesse o
Ferrari ou o Porsche
que mais lhe convinha,
de conquistador,
como hoje são os moços ministros das finanças,
ou avulsos tolejos de jaez ministeriável portucalense,
antepassados, anteriores e contemporâneos,
centenos espectáveis e desejosos de «trabalhinho lá fora»,
à imagem e semelhança de quantos criados necessários são
para organismos ditos internacionais e «importantes»
para o país e o mundo
— nunca me imaginei, dizia,
estar agora a fumar um cigarro à chuva lenta de Abril
para o I.º de Maio,
numa cidade onde nunca tendo havido uma guerra,
é um lugar dizimado pela Morte!
— Os patriotas que se calem, ou façam da Merda Oiro!
A cidade, dizem, ainda se dá pelo nome de Lisboa.
E, ao que parece, é ainda, também, a capital do país.
É, garanto-vos, uma cidade que não existe — conheço-a:
de muitas luas, e não poucos Merdinas!
Lisboa desespera por um belo maremoto para se lavar
das trombas que lhe são circunstanciais e impostas,
onde nenhum Afonso Henriques marcou compasso e fado,
veleidade e voz de punheta mal batida.
A luz de Lisboa foi um peido imobiliário que se lhe deu.
A canalha não tem direito ao ar que respira!
 
Zetho Cunha Gonçalves (1960, Huambo, Angola), de  Respiração Suspensa (2020), in Noite Vertical. Poemas Reunidos (1979-2021), Lisboa, Maldoror, 2021. pp. 220-221. «Zetho não é outra coisa senão um dos poetas mais endividados desta língua, e, por isso, naturalmente, um dos que mais ilustra essa forma de maturidade que é a assimilação dos melhores traços dos seus ancestrais. (…)A “escandalosa doçura” dos seus versos deve-se a esta capacidade de pôr o tempo a ferver, e é um testemunho desses grandes arcos que só a poesia permite traçar, precisamente por se basear em fórmulas estruturantes, ritmos que se alargam numa fome de infinito (…).Esta é uma escrita da mestiçagem, entre as tradições orais africanas e a influência das vanguardas modernistas, estabelecendo uma vasta cadeia alimentar de elos que se reactualizam constantemente. O que importa é o gozo exultante de quem se entrega ao ofício poético como arte primordial da linguagem e nomeia as coisas de modo a deter sobre elas um poder e alcançar esse conhecimento que, em si mesmo, transforma este mundo de mundos a que chamamos o real.» (Diogo Vaz Pinto, jornal I, 24/06/2022)


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