sexta-feira, 8 de novembro de 2024

TEATRO E SOCIEDADE, HOJE

 

UM NEURÓNIO E UM ALGORITMO ENCONTRAM-SE NUM BAR
 
   O tema destas conferências é complexo, desde logo porque a presença no título da conjunção coordenativa “e” pode gerar equívocos. Estamos a falar de uma oposição entre Teatro e Sociedade ou partimos do princípio que entre ambos há uma relação histórica mais ou menos sólida? O advérbio de tempo “hoje”, precedido de uma vírgula, restringe-nos o campo de reflexão, mas também não facilita a tarefa. O “hoje” está a ser vivido, ainda não é possível ter sobre ele um distanciamento que permita perspectivas desapaixonadas. Imersos no hoje, cada um de nós tenderá a pensá-lo mais em função das suas experiências pessoais do que apoiado num olhar esclarecido pelo trabalho que, esperamos, venham os historiadores a concretizar no futuro. Talvez seja isso o que se pretende, a partilha de visões apaixonadas e imersas na urgência de um problema que, não sendo exclusivo de agora, assume novas configurações naturalmente consequentes do que no tempo se foi perdendo, transformando e adquirindo.
   Ainda que entre passado e presente vislumbremos elos inquebráveis, relações de causalidade, eternos retornos, fastidiosas e desmotivadoras repetições, também encontramos momentos de ruptura que, como queria o filósofo, físico e historiador norte-americano Thomas Kuhn, instauram momentos de crise e levam a mudanças de paradigma. Creio que estamos agora a experienciar um desses momentos, a que a relação entre Teatro e Sociedade não passará incólume. Partirei, então, do princípio que estamos a tratar de uma relação, já que não consigo conceber o Teatro e a Sociedade senão no contexto de uma interacção dinâmica que leva a que o Teatro seja contaminado pela Sociedade ao mesmo tempo que a contamina. Não tendo notícia de Teatro entre os anacoretas do deserto, constato que até as experiências teatrais mais radicalmente marginais à Sociedade se manifestam no interior dessa mesma Sociedade ou para contestá-la ou para dela almejar o afastamento possível.
   Desta constatação advém uma primeira premissa: o Teatro é tão intrínseco à Sociedade como esta o é ao Teatro. No entanto, creio que a essa premissa podemos acrescentar algumas proposições, como por exemplo a de que o Teatro pode fazer-se para a Sociedade ou contra ela, sendo que em nenhum caso deixa de se realizar com ela, dentro dela, procurando reflecti-la, problematizá-la, transformá-la ou simplesmente, na pior das hipóteses, entretê-la, diverti-la, distraí-la. Assim sendo, a questão que julgo mais pertinente nos dias que correm é esta: como pode a nossa Sociedade acolher o Teatro no seu ambiente desprovido de massa crítica, sem esvaziá-lo ou privá-lo da sua função primitiva que é estimular o pensamento crítico, pondo em causa o statu quo desmontando os estereótipos e os preconceitos que obscurecem a realidade? A resposta a esta questão obriga, antes de mais, a que pensemos a nossa Sociedade. Que sabemos nós acerca da Sociedade em que actuamos?
   Estou convencido de que a característica mais diferenciadora e determinante do que é hoje a nossa Sociedade tem que ver com o advento das então novas tecnologias na segunda metade do século passado, primeiro com o desenvolvimento e a massificação da internet, depois com a disseminação dos smartphones, agora com o incremento da Inteligência Artificial. Permitam-me um parêntesis à laia de declaração de interesses. Padeço de um confrangedor desinteresse pela tecnologia, nomeadamente por aquilo a que chamam novas tecnologias. Chego-lhes sempre atrasado, ou seja, quando são já velhas e se tornaram obsoletas. Não sendo infoexcluído, uso o computador e o smartphone com parcimónia. Desconheço a imensa maioria de funções oferecidas por esses aparelhos, constatação que faço por tantas vezes ouvir alguém perguntar-me com espanto: "não sabias?" Não, não sabia que o meu smartphone tinha tamanhas competências. Se não sei, é porque não faço por sabê-lo. Em sabendo, dou-lhes o uso que me for mais prático. Quase sempre nenhum. A Inteligência Artificial também não me entusiasma por aí além. O entusiasmo que encontro noutras pessoas por essas coisas quase sempre me deprime. Não as olho com a desconfiança do indígena perante um espelho nem com a admiração do Papa Leão X pelas invenções de Leonardo da Vinci, são-me geralmente indiferentes. O ChatGPT, que parece fazer as delícias da população discente contribuindo para a ansiedade e a depressão da população docente, passa-me ao lado como cão por vinha vindimada. O meu sonho é morrer num estado que me aproxime o mais possível do modus vivendi do homem das cavernas, de preferência caçado por um tigre dentes-de-sabre.
   Dito isto, a verdade é que vivo entre um povo fascinado por gadgets. Dizem as estatísticas que 84% dos portugueses usam smartphones, somos o 8.º país da União Europeia com mais telemóveis por habitante. Em compensação, somos o quinto que menos livros lê por ano. 61% da população portuguesa, segundo o Eurostat, não lê um único livro durante um ano. Pior que nós só a Bulgária, a Itália, o Chipre e a Roménia. Em Julho de 2021, uma notícia do jornal Público dava conta de que os «Portugueses já passam mais tempo online do que a dormir». Enfim, no meu caso não é difícil, padeço de insónias. Estamos sob a tempestade perfeita de uma revolução tecnológica sem precedentes, não equiparável sequer à Revolução Industrial do século XVIII porque então, entre os homens e as máquinas, havia uma diferença básica: as máquinas não raciocinavam, era o homem quem as controlava e dominava. Agora, as máquinas não só raciocinam como têm a capacidade de o fazer mais eficazmente do que qualquer ser humano, mesmo o mais dotado dos seres humanos.
   Cada vez mais influenciada pela inteligência das máquinas, a nossa vida social tende a ser também cada vez mais anti-social. Os algoritmos condicionam as decisões que tomamos, vamos para o engate no Tinder e andamos à porrada no X, experienciando índices elevadíssimos de excitação em corpos fechados sobre si mesmos. Abrimo-nos no ginásio, narcisicamente reflectidos num espelho. Aí abrimo-nos ao nosso reflexo, somos magníficos, deslumbrantes, apetecíveis. Ou então abrimo-nos na chaise-longue do psiquiatra para que nos trate dos medos e das fobias, dos recalcamentos, da histeria. Que lugar ocupa o Teatro numa Sociedade assim, feita de indivíduos cerrados em si mesmos, afastados uns dos outros, indisponíveis para a autocrítica e a dúvida, uma sociedade em que estamos cada vez menos na presença uns dos outros?
   Na escola, aprendi e ensinei que as acções livres são aquelas pelas quais podemos responsabilizar quem actua. Ora, hoje estamos sob uma espécie de coacção voluntária que, em parte, nos exime da responsabilidade sobre as nossas próprias decisões. Abdicamos de liberdades para nãos nos responsabilizarmos. Dizia a socióloga Évelyne Sullerot num livro publicado em 1997 com o título “Le grand remue-ménage” (comoção?) que, a partir da década de 1980, passámos a recorrer ao aconselhamento para dormir, comer, fazer amor, ter filhos, educá-los, tirar um curso, trabalhar, para se «ser a si mesmo», num retrato certeiro do processo de infantilização massiva que trouxe as sociedades ditas desenvolvidas até aqui, a este hoje em que grande parte das pessoas abdica de ser social adoptando a cultura online. Nas redes, entre mim e o outro não se intromete o cheiro, é tudo aparente, estamos protegidos pela distância, o outro é mais um simulacro apreciável e desejável do que um ser intrigante, um diverso que me interpela. O match é que manda. Os interesses singulares de cada indivíduo sobrepõem-se, assim, aos do cidadão participativo, pelo que não admira o ataque à cidadania e ao seu ensino em escolas que progressivamente vêm substituindo a formação de cidadãos pela formatação de empreendedores. Estamos zangados com o mundo? Publicamos um post, assinamos uma petição. E o mundo lá prossegue a sua marcha com cada um de nós engravatado nas suas vidas vidinhas, como diria Alexandre O’Neill. 
   As consequências do caminho trilhado estão diagnosticadas, vão sendo estudadas e debatidas, divulgadas e discutidas em múltiplos fóruns, publicadas em livro, revistas, artigos académicos, papers a granel e, como não podia deixar de ser, chegaram ao Teatro. Há dois anos, o dramaturgo britânico Martin Crimp, num espectáculo intitulado “Not One of These People”, recorreu à Inteligência Artificial e a tecnologia deepfake para questionar a definição de drama e o que é ser humano. 300 rostos gerados por Inteligência Artificial são animados em tempo real por tecnologia que reproduz a voz e os movimentos faciais de Crimp em cada um daqueles rostos. Crimp entra e sai ocasionalmente de cena, cumprindo o seu papel de marionetista pós-humano. Entre os rostos no ecrã e os títeres manipulados num pequeno Teatro não há grande diferença.
   E já que estou com a mão na massa, falo-vos também um pouco de “Na República da Felicidade”, peça do mesmo Martin Crimp que o Teatro da Rainha levará à cena em breve, com encenação de Fernando Mora Ramos, numa co-produção do Teatro da Rainha com o Teatro Nacional São João e o Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha. Na segunda parte deste tríptico feito de descontinuidades narrativas, Crimp oferece-nos um retrato desconcertante da Sociedade actual sob o título genérico de “As Cinco Liberdades Essenciais do Indivíduo”. Uma mão cheia de liberdades. Indica-nos inicialmente que nessa parte não há distribuição de papéis, mas toda a companhia deve participar numa polifonia textual em que salta à vista o paradoxo das individualidades que se subsumem sob um padrão que as uniformiza. «Eu sou único, isto não tem nada que ver com política», dizem todos em coro, à vez. Ao ser proferida por todos, esta frase deixa de demarcar qualquer singularidade, transforma-se num padrão, numa redundância, num desses chavões que se repetem ad nauseam blindando-nos à crítica, ao conflito, à diferenciação. Estamos in. Se todos apregoam que são únicos, onde fica a individualidade? Todos são únicos, singulares, individuais, mas a dizerem exactamente as mesmas coisas. Entre pessoas assim e os títeres manipulados num pequeno teatro não há grande diferença.
   Se bem estão recordados, a internet foi-nos vendida inicialmente como uma ferramenta libertadora. Propulsionadora de uma globalização tão elogiada a seguir à queda do Muro de Berlim, a internet libertaria finalmente os povos da escravatura do trabalho, as máquinas fariam por nós, em meia dúzia de horas, o que nós nos esfalfávamos uma vida inteira para fazer. A globalização serviu aos mercados, não serviu aos seres humanos — como facilmente se constata nos discursos actuais sobre políticas de imigração e na quantidade de muros entretanto erguidos, para não mencionar um Mediterrâneo transformado em cemitério. Já a internet, nossa putativa salvadora, não nos livrou da servidão e, independentemente de mais-valias que ninguém nega ou põe em causa, tem beneficiado sobretudo os grandes traficantes das novas drogas livres, sejam eles Jeff Bezos, Zhang Yiming, Elon Musk, Bill Gates ou Mark Zuckerberg.
   O nosso futuro pós-humano, expressão usada pelo não necessariamente recomendável filósofo e economista Francis Fukuyama num livro de 2002, aí está no seu máximo esplendor, sintetizado em parangonas noticiosas como esta: «Futuro da inteligência artificial é o raciocínio e o planeamento». Do parapeito da janela do computador, observamos esse futuro enquanto os algoritmos vão ganhando terreno aos neurónios no campo de batalha. Uma Sociedade de clones, será isso? Talvez ainda haja esperança: se nós falhámos no planeamento, como parece que falámos, pode ser que as máquinas acertem. Mas quem é que depois responsabilizaremos se correr mal? Impõe-se uma nova pergunta: que papel tem o Teatro a desempenhar nesta Sociedade em que os indivíduos estão cada vez menos na presença uns dos outros, permitindo que as relações entre si sejam mediadas por mecanismos que não controlam de todo e lhes oferecem uma ilusão de liberdade enquanto se vão mimetizando? Não falo, portanto, desse estar em ajuntamentos massivos, típico de rituais religiosos, como os festivais e os futebóis, em que o ser se apaga na confusão da multidão, um estar não estando.
   O mais relevante, creio, é não nos rendermos ao espectáculo e ao entretenimento esvaziado de crítica, não abdicarmos desse espírito crítico que o teatro promove ao confrontar-nos com a realidade, não prescindirmos desse questionamento permanente, desse debate incessante, cedendo à facilidade das emoções e do pathos que de tudo se apropria por via do populismo e do sensacionalismo. Estamos em guerra contra o superficial, contra as perspectivas reducionistas que simplificam em vez de problematizar. É uma guerra aberta e declarada, pois não acreditamos que para problemas complexos existam explicações simplistas. De explicações simplistas está cheia a barca do inferno. Esta não rendição deve ser ancorada numa atitude de resistência a tudo quanto pretenda impedir o Teatro de ser Teatro, impelindo-o para o abismo do mero divertimento, do passatempo, do entretenimento publicitário, da diversão sedutora mesmo quando disfarçada por causas nobres. Um Teatro que não problematize, subserviente aos esquemas e à lógica de um mercado que seduz para gerar dependência, não nos interessa.
   Sirvo-me de 2 entre 36 parágrafos que compõe o texto intitulado “Teatro: arte no coração da polis”, coligido por Fernando Mora Ramos no livro “Uma caixa preta é uma folha branca. Ensaios sobre teatro”. Diz ele:
   «19. O teatro é um espaço dos potenciais hereges, isto é, de gente disposta a escapar à formatação, último reduto, uma clareira de possibilidades, de laicidade por oposição às religiões e aos rituais das modas, à condição do sujeito anonimamente perdido na sua “individualidade” in-significante no meio da massa. O teatro é um território do eu e da cidade, do eu e do mundo, teatro do eu – teatro do mundo.»
   E continua, mais à frente:
   «28. O teatro é inimigo do mercado na medida em que o mercado é inimigo do comum liberto do que, sendo acção das massas, é esclarecido, da política laica, essa forma autónoma e organizacional da possibilidade de um destino não escravo, autodeterminado.»
   Estamos, portanto, na luta por um Teatro que pretenda contribuir para a emancipação dos indivíduos e, por consequência, esteja na raiz de uma Sociedade livre e plural, que abrace o debate crítico sem temer o contraditório, sem fazer disso escândalo, encarando-o como valor acrescentado. A Sociedade, ao contrário do que tantas vezes se diz, não é uma mera entidade abstracta, é um todo dinâmico em construção composto por indivíduos que não nascem isolados, nascem num contexto que lhes oferece, desde logo, uma língua para se exprimirem e com a qual poderão olear o pensamento.
   Tal como as outras artes, o Teatro não pode deixar-se engolir pelas leis do mercado que confundem sucesso com fama passageira e hipotecam essa dimensão solidária do pensamento que é a expressão artística. Precisamos de um Teatro que se oponha desavergonhadamente a essa ideia de sucesso, que não se permita reduzido aos efeitos de um anúncio publicitário exibido entre as notícias do genocídio em Gaza, precisamos dele como de pão para a boca ou de ar para os pulmões, não no sentido de uma ruptura total com a Sociedade mas antes no sentido de algo que, estando no seu interior, a assimila, digere e transfigura, rompendo com modelos pré-estabelecidos e propondo aventuras renovadoras da criação humana, gerando crises para que novos paradigmas se instaurem.
   O erro é a melhor arma que o neurónio tem contra o algoritmo padronizador, o erro é a melhor ferramenta do conhecimento, insistamos no erro: «Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better.»
 
Henrique Manuel Bento Fialho
Évora, 8 de Novembro de 2024

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