sábado, 28 de dezembro de 2024

UM POEMA DE ROSA OLIVEIRA

 


ODEIO LIVRARIAS MODERNAS

lemos o livro fechado da infância
os automóveis giram sob a batuta infinita
de nuvens em fim-se-semana
o vento anuncia algo
mais poderoso que o vento

muitas pessoas repetem
nunca pensei viver estes tempos
tremendo em segredo por tempos piores
muitas pessoas vêem só o presente
muitas pessoas julgam estar
à beira do abismo
se assim se crêem é porque estão
de nada serve a esperança
hipoteca letal que nunca virá

muitas pessoas descrêem 
que estão vivas
e pensam
estou só a cumprir
uma pena sem fim à vista

não vemos as grades
tão concentrados em não ver
olhamos as pontas dos pés
pisando com cuidado
para não estilhaçar
a inevitável bomba interior

muitas pessoas tentam ler a vida
tão desfocada na sua anemia
que há gente a dizer
que se pode gostar de um poeta
pelas razões erradas

opiniões estimáveis morrem entre dentes
estamos em guerra
sem grades para explodir

muitas
pessoas
lêem descrêem

outras prosseguem no mundo
inequação de segundo grau
a piscar o olho a quem
lhes tome o pulso

mas parece que
nem a mais potente calculadora
resolve o mundo
em verdade
em mentira
Vos digo

Rosa Oliveira, in Tardio, Edições Tinta-da-China, 1.ª edição Março de 2017, 1.ª reimpressão Maio de 2023, pp. 66-67.

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