(toninha)
aquilo não era uma vida
era uma biografia
vivia dentro da sua biografia futura
e renunciara à vida por não suportar
o ruído do mundo
escrevia listas de roupa como quem borda
patas de percevejos nas costas
dos habitantes da aldeia
juntou todas as cores no espectro de trazer por casa
trocava o ele por ela como se estivesse
ameaçada de febres permanentes
no centro da casa crescia a obstinada árvore
puritana
retorcida nas escadas
com os seus nós racionalistas
agarrados ao corrimão
chegando ao sótão a tempo de pôr-do-sol
o pai riu-se uma só vez em toda a vida
so they say
e mandaram tocar o sino paroquial
afinal a vida é relatável
é preciso perder o medo de contar
o que se passa entre portas
onde se passa tudo o que deveras importa
e nalguns casos é só o que existe
pois a maioria dos humanos
teve só vida e pouca obra
mas ter só vida é uma imensidão de possibilidades
narradas ou não
é assim com as pessoas comuns
aquelas que constroem a história
que estão ali de sol a sol a dispor as pedras
do presente
umas sobre as outras
que isto de ser humano
e comum
e mortal
parece um pecado
de lesa
intelecto
valha-nos que
os maiores pedantes
da história passaram a nota
de rodapé
comovida ou não
mais sorte tiveram os tiranos
com linhas de investigação
inteirinhas
e dedicadas
porque nunca acaba o nosso
pasmo
perante a barbárie
que continuaremos a
dissecar e amortalhar
sem sim
o nosso problema é sempre o presente
esse tempo inexistente
indefinível
por definição
o passado é o que quisermos fazer dele
e o futuro
verdadeiramente a quem importa o futuro?
aos que lá chegarem
e quem lá chegar que se amanhe
sorte ou azar de quem o apanhe
se formos nós
logo se vê
pois nada podemos saber desse tempo
que nessa altura será
o inagarrável presente
bem diz o outro
live and let die
e toca de desenhar mais umas
ilustrações para a playboy
por isso é que ela se fechou em casa
a fazer compotas
e a encher as gavetas de papéis
riscados
numa linha que inventou
nas redondezas
não havia playboy nem playgirl
só compota e gardénias
o que prova ser possível
uma língua privada
e viver dentro de uma biografia
com uma base alimentar de
compotas e gardénias
desde que se tenha
atenção ao sal
Rosa Oliveira (Viseu, 1958), in Cinza (Tinta-daChina, Junho de 2013). «Rosa Oliveira tem sabido destacar-se por um
pessoalíssimo modo poético, dominado por um trabalho de escrita que articula,
muitas vezes de forma paródica, tradição literária e modernidade, e em cuja
constituição entram, como tónicas, o cuidado construtivo, a confessionalidade
esquiva, arredia, a truculência lúdica, um tom céptico, desencantado, friamente
irónico. Quem desconheça os seus começos literários facilmente os confundirá
com o arranque da colecção de poesia da Tinta-da-China, inaugurada com o seu livro
de estreia, “cinza” (2013), a que se seguiu “tardio” (2017) e o mais recente
“errático”, que vem fechar um ciclo. A metáfora & companhia continuam a ser
as suas melhores aliadas. Já a 'Puizia', 'o sujeito poético' e 'o eu lírico',
essas criaturas de extensíssima vida, causam-lhe “urticária mental em todos os
poros”, certamente os mesmos por onde saem a teoria literária que, em generosas
e irónicas doses, os seus livros de poemas convocam» (Teresa Carvalho, in
Jornal I, 31/05/2021). Rosa Oliveira é ainda autora de “Desvio-me da bala que
chega todos os dias” (não (edições), 2021).
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