quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

OS INVISÍVEIS

 


Poeta, ensaísta, prosador, Nanni Balestrini (1935-2019) surge amiudadamente associado ao experimentalismo italiano, autor de uma obra vanguardista, quando ainda fazia sentido falar em vanguardas, militante ligado ao grupo Potere Operario. No prefácio a “Os Invisíveis” (Barco Bêbado, Setembro de 2024), originalmente publicado em 1987, o filósofo marxista Toni Negri fala de um “romance didáctico” sem deixar de levantar a questão que se impõe: «mas quem aprende com quem?» É um romance em que o autor parece dar testemunho da sua própria aventura militante, percorrida em 48 capítulos, divididos e vividos por quatro partes, sem qualquer pontuação. A louvável tradução de Pedro Morais mostra-nos, no entanto, como essa ausência de pontuação não dificulta em nada a leitura, antes lhe confere uma aceleração favorável aos eventos narrados, a agitação, o desassossego, a inquietação mobilizadores de jovens que a seguir ao Maio de 68 e pelos anos de 1970 adentro experienciavam uma enérgica vontade de mudar o mundo rompendo com os paradigmas instalados. Estamos a falar de experiências de ocupação, sabotagem, luta operária à revelia dos sindicatos oficiais, estamos a falar de guerrilha urbana: «generalizar a ofensiva significa radicalizar a insubordinação a qualquer hierarquia excitar a nossa criatividade destrutiva contra a sociedade do espectáculo sabotar as máquinas e as mercadorias que sabotam a nossa vida promover greves gerais selvagens de tempo indeterminado reunirmo-nos sempre em assembleia em todas as fábricas da separação eleger delegados sempre revogáveis pela base conectar constantemente todos os lugares de luta não descurar todos os meios técnicos úteis à comunicação libertada dar valor de uso directo a tudo o que tem valor de troca ocupar permanentemente as fábricas e os edifícios públicos organizar a autodefesa dos territórios conquistados e música para a frente» (p. 150). No turbilhão caótico de acontecimentos relatados, Balestrini dá conta das acções levadas a cabo por grupos informais, tentativas de organização colectiva, da prisão e dos motins no interior da prisão, das relações conflituosas com as instituições tradicionais, fossem elas a família, o poder judicial, as polícias, os partidos políticos, do julgamento, das lógicas de sobrevivência interna, dos códigos morais de grupo e das consequências de toda esta acção. Não sei se será exacto falar de um certo desencanto, embora algumas passagens nos levem a crer que sim: «(...) já não tínhamos nada para dizer já ninguém ia à sede agora todos os dias ocorria um novo desastre um que era detido outro que enlouquecia um que desaparecia outro que se suicidava todos desapareceram não havia mais nada para dizer e assim ficou tudo ali a encher-se de pó o transmissor o leitor de cassetes a aparelhagem o amplificador o microfone e a voz de China (...)» (p. 241). Nesta como noutras deste extraordinário romance, vislumbramos, pelo menos, uma problematização dos resultados alcançados que não precisa de reflexões complexas para se manifestar, ao mesmo tempo que nos leva a pensar no poder castrador das chamadas democracias liberais que, entretanto, parecem ter vencido sociedades amorfas com as suas promessas de conforto e bem-estar. Talvez a apatia se instale também como uma espécie de ressaca dessa agitação que no final do século XX redundou numa desconfiança das virtudes inerentes a diversas formas de luta, assim como da acomodação a uma sensação de impotência motivada, porventura, por uma insatisfação causada pela escassez de resultados objectivos quanto às aspiradas mudanças e transformações sociais. O próprio título do romance, “Os Invisíveis”, remete para essa dificuldade de atrair a atenção sobre reivindicações específicas, quase sempre geradora de actos de luta radicais tais como alguns dos que vamos observando actualmente nos chamados “movimentos climáticos” ou, mais recentemente, no assassinato de Brian Thompson, CEO da UnitedHealthcare, por Luigi Mangione. Acto isolado? Veremos. É um romance, por isso, que lido à luz do nosso tempo recoloca questões determinantes acerca dessa tensão essencial entre as forças conservadoras e as diversas forças que, mais ou menos progressivas, têm as suas raízes num sentimento de injustiça e numa consciência profunda das assimetrias localizadas e globalizadas que espelham de um modo objectivo, não sujeito a percepções individuais, o desconcerto do mundo. O romance de Nanni Balestrini é um testemunho pungente e vital de um contexto de guerrilha mais ou menos informal, mas também do modo como essa guerrilha vai perdendo gás por fugas que o terrorismo de estado, a repressão policial, o terrorismo oficial, se encarregam de aproveitar para fazer implodir os movimentos de contrapoder. Capa e pinturas no miolo de Vera Matias.

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