Os gregos antigos,
a acreditar nas tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, tinham aquela mania
dos oráculos e dos sonhos, visões tão nítidas e tão lúcidas que determinavam as
acções, os enredos, a intriga. O destino manifestava-se por adivinhação e os
sonhos eram vislumbres assombrosos desse trágico destino. Sonho muito,
confesso, e por vezes também me deixo levar pela tentação de acolher as imagens
que se me formam na mente como prenúncios do porvir. Acontece-me durante o sono
ou naquele estado delirante que se me apossa amiúde do corpo quando me deito no
sofá a ouvir a Clara Ferreira Alves na TV.
No final do ano
passado, sonhei que Donald Trump era reeleito presidente dos Estados Unidos da
América do Norte com a promessa de transformar Gaza num resort de luxo e de conquistar
a Gronelândia para impor tarifas aos pinguins. No sonho, aparecia a seu lado
uma espécie de Pílades ao lado de Orestes, um tipo com a cara de Elon Musk,
empreendedor e filantropo dos carros eléctricos e das viagens intergalácticas e
das trips de LSD e da Inteligência Artificial e daquela coisa que dá pelo nome
de X, uma rede social, é isso que lhe chamam, onde meio mundo passa o dia-a-dia
a insultar outro meio. Destilam ódio, antes destilassem medronho. O sonho
terminava a 20 de Janeiro de 2025, com Trump a ser empossado numa festa com
gente a fingir que dançava enquanto uns milhares de crianças eram exterminadas
pelas bombas de Israel. Tudo normal.
O ano começou bem,
com o filho mais novo de Musk na Sala Oval a demonstrar ao mundo que há salas
onde as crianças conseguem ser os únicos adultos. Por cá, americanizados até ao
tutano num processo que vem de há muito, também vamos assistindo paulatinamente
a esta infantilização trágica de uma sociedade rendida à trafulhice, à
chico-espertice, aos videirinhos das empresas familiares e afins, à venalidade
generalizada. Podiam ser sonhos, podiam ser oráculos, mas são confirmações,
estes quatro exemplos que irei mencionar de como os peixinhos a que se dirigia
Santo António foram capturados pela rede e já não se ouvem senão a si mesmos
como se não fizessem parte de um colectivo chamado sociedade.
Primeiro exemplo:
em Janeiro do ano corrente, durante um podcast entre profissionais da
influência, um grunho com muitos seguidores, como hoje é apanágio dos grunhos, gaba-se
de ter fugido depois de atropelar uma mulher. Num país de atropelamentos e
fugas, o grunho riu e o entrevistador riu e a vítima, ao que parece limitada
para o resto da vida, ouviu-os a rir. Seguiu-se o coro de indignados. O grunho
continua por aí a publicar vídeos, a ser entrevistado pelo Manuel Luís Goucha,
a capitalizar a sua grunhice num país que venera Cristina Ferreira, essa mesma,
que inda há dias justificava um crime hediondo colocando o ónus na vítima:
pôs-se a jeito. Caso Jair Pereira, suspeito de ter assassinado Conceição
Figueiredo.
Segundo exemplo: no
dia 5 de Março, o número 1420 do Jornal de Letras, Artes e Ideias foi para as
bancas destacando na capa o bicentenário do nascimento de Camilo Castelo
Branco. A acompanhar o título, uma ilustração de João Abel Manta. O jornal foi
para as bancas, foi distribuído, talvez até tenha sido lido, até que um mês
depois, a 5 de Abril, o poeta Rui Almeida notou algo estranho na capa e fez
notícia disso no seu perfil de Facebook. A ilustração não era de Camilo, mas
sim de Eça. Seguiu-se o coro de indignados, que não tinha dado por nada durante
o mês que passara e, muito provavelmente, não comprara nem lera o JL, alguns
nem sequer saberão distinguir Camilo de Eça, mas lá vociferaram todos. Na rede.
A rede tem este efeito congregador, serve para tudo e para nada na mesma
exactíssima proporção.
Terceiro exemplo:
três jovens foram detidos por suspeita de violação agravada e pornografia de
menores contra uma adolescente de 16 anos. Deu-se o caso depois de os tais
jovens, também eles profissionais do influencionismo, haverem exibido na rede o
vídeo da alegada violação (não vi, não sei). E riram-se muito, contra um coro
de indignados. Sucede que o vídeo partilhado pelos agressores, com idades entre
os 17 e 19 anos, gente que continua a publicar vídeos e a fazer cenas, teve 32
mil visualizações e nenhuma das pessoas que o viu denunciou o caso às
autoridades. O coro de indignados viu e calou. Entre as pessoas que viram,
muitos perfis com nomes femininos, criticavam a vítima. Eis a rede no seu
máximo esplendor.
Quarto exemplo: a
27 de Março, a Câmara de Lisboa avançou com uma obra que implicou a retirada de
árvores, uns jacarandás da Avenida 5 de Outubro. Os trabalhos foram
interrompidos por algumas horas porque uma mulher, de seu nome Sara António,
sentou-se no local em protesto contra a construção do parque de estacionamento
que obrigava à remoção dos jacarandás. Amo-te Sara António. 50 mil almas haviam
assinado uma petição contra a obra, uma única mulher, que não assinou petição
alguma nem sabia da sua existência, surgiu no local e protestou. O coro de
indignados continuou na rede, continua na rede, continuará na rede até ser
obrigado a desenvencilhar-se da rede porque há-de chegar o dia em que não dará
mais, teremos de ir para a rua, teremos de nos dirigir aos locais, teremos de
nos sentar no meio das estradas, teremos de voltar a abraçar-nos uns aos outros
na estrada larga. Porque se assim não for, meus amigos, o oráculo é claro: a
trumpização do mundo tomará conta de nós.
Servem estes
exemplos para sublinhar duas ou três ou mais ideias que vossas excelências se
encarregarão de formular à vossa maneira. Eu formulo já esta: de nada valerão
as manifestações de solidariedade para com as vítimas recentes da extrema-direita
se continuarmos a normalizar o discurso de ódio que pulula à nossa volta e se
instalou em força na Assembleia da República, pois do discurso à acção vai uma
unha do mindinho. O comodismo e o medo são combustíveis da violência, sobretudo
quando reduzimos a nossa indignação a gestos inconsequentes como os likes e as
partilhas e as visualizações, mas também quando aceitamos a banalização do mal
e do ódio no espaço comunicacional. Ele rapidamente saltará dos ecrãs para a
nossa rua, da rua para os corredores do poder. Depois será tarde, a barbárie
tomará conta da nossa vida.
Duas falácias muito
comuns nos comentários aos crimes, é o que são, cometidos pela extrema-direita.
Primeira: "eu queria era ver-vos a defender a polícia quando é
agredida". A polícia não precisa da nossa defesa, é por isso que aceitamos
que ande armada. Nós, cidadãos desarmados, é que precisamos que a polícia nos
defenda, o que começa a tornar-se raro quando concluímos que ela é uma ameaça a
si mesma. A solução não está em mais policiamento, como veio bufar Moedas. Está
em melhor polícia, desde logo numa polícia expurgada da influência destes
movimentos que se dizem patrióticos mas atentam diária e impunemente contra a
nossa Constituição (a que a direita quer rever). Segunda: "eu queria era
ver-vos a defender os portugueses que são agredidos por imigrantes." Pela
parte que me toca, ao contrário da Cristina Ferreira, eu estarei sempre do lado
das vítimas contra os agressores, tenham estes a nacionalidade que tiverem e
sejam de que etnia forem. Este é o princípio de igualdade que foi defendido nos
discursos do Dia de Portugal, sob protestos de André Ventura que, sem perceber,
nega-se também a si mesmo ao fazer-se de vítima com discurso de agressor. É
lobo mascarado de coelha Acácia.
Agora vou ali à rua
passear a cadela porque já não aguento mais estas redes e estes sonhos e estas
profecias. Tenham um bom Santo António.
Henrique Manuel
Bento Fialho
Caldas da Rainha,
11 de Abril de 2025/12 de Junho de 2025
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