A acção de Órfãos passa-se toda no interior de um apartamento, mormente na sala onde decorre o jantar. Há referências à cozinha, ao quarto e, sobretudo, ao exterior. Na verdade, logo no início, com a inesperada chegada de Liam, o exterior como que invade o espaço interior. É o inferno da rua que ali se instala no conforto do lar, para o destruir.
Que lar é aquele?
Que apartamento é aquele?
Imagens de múltiplas encenações um pouco por todo o mundo produzidas desde a estreia em 2009, colocam-nos perante um leque de opções muito dissemelhantes. Do apartamento de luxo ao contentor com linhas geométricas definidas, de espaços absolutamente minimais à casinha confortável, há de tudo um pouco. Basta olhar para as soluções cenográficas nas encenações de Leonard Beck (Bochum, Alemanha, 2016), com paredes formadas por molduras acopladas (lembrei-me da pintura de Piet Mondrian), ou a de Florian Thiel (Bremerhaven, Alemanha, 2024), uma sala luxuosa com candelabro, mesa suspensa e cadeiras transparentes, para percebermos a diversidade de leituras que o texto permite, a despeito das indicações claras em múltiplas didascálias e do realismo inerente aos diálogos.
Que casa é, então, aquela?
Sabemos que fica num bairro problemático, as referências das personagens ao ambiente social nas imediações assim o indicam. Sabemos que entre esse ambiente social problemático e a casa enquanto refúgio há uma espécie de fronteira que se vai esbatendo. Tudo temos a ganhar, creio, com a instalação de um ambiente acolhedor no início, um ambiente verdadeiramente romântico e familiar, o momento do jantar à luz das velas. Liam faz referência a um sofá, há comida na mesa. Temos, portanto, uma mesa de jantar, um sofá para recolhimento, mas também a criança de cinco anos que ali habita não pode ser ignorada. Algum elemento infantil deverá indicar a sua existência. Um cavalinho? Um triciclo? Brinquedos espalhados pelo chão? As velas terão de estar presentes, talvez baste uma a servir de centro de mesa.
Que outros elementos podemos acrescentar ao espaço que sirvam às personagens?
Agrada-me a ideia de uma jarra com flores que passe da mesa de jantar para uma mesa de apoio ao lado do sofá e à mesa de jntar retorne na última parte, a quarta. As flores podem não ser um mero objecto decorativo, enviam-me também para o cemitério onde estão enterrados Jeanie e os pais de Helen e Liam. Tudo no interior deve, de algum modo, remeter para o exterior, como se por momentos aquela família pudesse ser a dos cartazes na feira de máquinas a vapor. O que se pretende é mostrar como no berço das convenções, num ambiente convencional, o mal emerge com a maior das facilidades, transformando um espaço acolhedor num espaço inóspito.
Agrada-me igualmente a possibilidade de um espelho, esse elemento reflexivo que surge no discurso de Liam sobre Danny, de Danny sobre si mesmo, de Helen sobre o passado com o irmão num orfanato. Helen fala da família que esteve para a adoptar como se estivesse a projectar uma hipótese de vida, a que não foi. É curioso como o que mais íntimo nela se reflecte surja quando fala dos outros.
O papel de parede será a maquilhagem do interior, no final escurecido com a iluminação do fundo grafitado. Além do papel de parede, um tapete sob a mesa de jantar, esse tapete que Liam terá cuidado em não sujar a ponto de escovar as solas dos sapatos. Nada de luxos. O ambiente da peça é middle class, gente à procura de se orientar, gente que trabalha e tem filhos e constrói família. O órfão Liam é a face inadaptada e inadaptável deste ambiente progressivamente disfuncional, ele está de fora estando dentro, é a fenda na parede.
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