Desde
a estreia em 2009 no Traverse Theatre, em Edimburgo, que a peça Órfãos,
de Dennis Kelly, nunca mais deixou de ser encenada um pouco por todo o mundo. A
recepção crítica favorável e um Herald Angel Award no festival Fringe explicam,
em parte, o interesse, mas não encerram a multiplicidade de abordagens que o
texto conheceu. Talvez a universalidade, no espaço e no tempo, dos temas
abordados contribua para uma compreensão mais efectiva do interesse suscitado.
Tal como o título indica, estamos perante um objecto em que o desamparo e o
abandono são marcas essenciais, ainda que não devam ser lidas de um modo
literal. A orfandade aludida na peça dá-se tanto no plano familiar como no
plano social. Disse o próprio Dennis Kelly, em entrevista a Lyle Brennan (The
Skinny), que o título «se refere a uma sensação de nos sentirmos órfãos dentro
da sociedade. Sentimo-nos um pouco como se tivéssemos sido abandonados pelas
pessoas que deveriam cuidar de nós» (2009).
Uma das dimensões mais interessantes neste trabalho do dramaturgo inglês é precisamente a de um encontro entre uma sociedade corrompida pela violência, pela cultura do ódio, e uma família num momento de disrupção total motivado pelo confronto com a realidade fora do aconchego do lar. O jantar romântico de Helen e Danny abruptamente interrompido pela entrada em cena de Liam, irmão de Helen, é o mote para uma discussão sobre a volatilidade dos laços familiares, as fracturas sociais nas democracias liberais, a criminalidade, o aborto, os efeitos da imigração, o racismo, a tortura, a alienação da consciência moral e dos valores que a sustentaram até o individualismo ter definitivamente tomado conta dos cidadãos. «Então é nisto que o mundo agora se tornou?», pergunta Danny no termo da primeira parte, «Quem conhecemos e quem não conhecemos?»
A lógica do “nós ou eles”, das “pessoas de bem vs. pessoas de mal”, é aqui desmontada através de um dilema moral clássico: se alguém que amamos cometer um crime, o que devemos fazer? Denunciar ou proteger? O mal deixa de ser exclusivo de uma das partes, pode surgir em qualquer lugar, em qualquer classe social ou etnia ou grupo, quando menos esperamos bate-nos à porta, entra pela nossa casa, invade-nos o espaço e toma conta de nós.
Comparado amiúde com Harold Pinter no modo como nos apresenta uma domesticidade enganadora, o trabalho de Dennis Kelly parece alicerçar-se igualmente na máxima: «Uma peça não é um ensaio» (Pinter, Escrever para Teatro, 1962). E, de facto, em Órfãos não vislumbramos nenhuma tentativa de nos convencer do que quer que seja. A situação abordada serve antes de exemplo para demonstrar como nenhuma pessoa está a salvo de cometer os actos mais bárbaros, a crueldade emerge onde menos se espera, os instintos animalescos são inerentes ao ser humano, a maldade não é exclusiva dos monstros, é humana, demasiado humana.
Se a violência está no cerne desta peça, ela está enquanto ignição de um dilema moral clássico e universal. E isso é desenvolvido através de diálogos impressionantemente bem concebidos, num desenrolar sucessivo de argumentos, lapsos e falácias, típico dos thrillers cuja marca principal é o suspense que garante tensão do princípio até ao fim. A incredulidade de Danny, a manipulação de Helen, a autocomplacência de Liam, são apenas aspectos caracterizadores de personagens muito mais complexas que não aceitam juízos morais de nenhuma espécie. O que em todas elas se revela, de um modo mais ou menos acentuado, é como um jantar romântico pode transformar-se numa terrível cena de tortura em que o amor entre uns contrasta com o ódio entre outros.
Uma das dimensões mais interessantes neste trabalho do dramaturgo inglês é precisamente a de um encontro entre uma sociedade corrompida pela violência, pela cultura do ódio, e uma família num momento de disrupção total motivado pelo confronto com a realidade fora do aconchego do lar. O jantar romântico de Helen e Danny abruptamente interrompido pela entrada em cena de Liam, irmão de Helen, é o mote para uma discussão sobre a volatilidade dos laços familiares, as fracturas sociais nas democracias liberais, a criminalidade, o aborto, os efeitos da imigração, o racismo, a tortura, a alienação da consciência moral e dos valores que a sustentaram até o individualismo ter definitivamente tomado conta dos cidadãos. «Então é nisto que o mundo agora se tornou?», pergunta Danny no termo da primeira parte, «Quem conhecemos e quem não conhecemos?»
A lógica do “nós ou eles”, das “pessoas de bem vs. pessoas de mal”, é aqui desmontada através de um dilema moral clássico: se alguém que amamos cometer um crime, o que devemos fazer? Denunciar ou proteger? O mal deixa de ser exclusivo de uma das partes, pode surgir em qualquer lugar, em qualquer classe social ou etnia ou grupo, quando menos esperamos bate-nos à porta, entra pela nossa casa, invade-nos o espaço e toma conta de nós.
Comparado amiúde com Harold Pinter no modo como nos apresenta uma domesticidade enganadora, o trabalho de Dennis Kelly parece alicerçar-se igualmente na máxima: «Uma peça não é um ensaio» (Pinter, Escrever para Teatro, 1962). E, de facto, em Órfãos não vislumbramos nenhuma tentativa de nos convencer do que quer que seja. A situação abordada serve antes de exemplo para demonstrar como nenhuma pessoa está a salvo de cometer os actos mais bárbaros, a crueldade emerge onde menos se espera, os instintos animalescos são inerentes ao ser humano, a maldade não é exclusiva dos monstros, é humana, demasiado humana.
Se a violência está no cerne desta peça, ela está enquanto ignição de um dilema moral clássico e universal. E isso é desenvolvido através de diálogos impressionantemente bem concebidos, num desenrolar sucessivo de argumentos, lapsos e falácias, típico dos thrillers cuja marca principal é o suspense que garante tensão do princípio até ao fim. A incredulidade de Danny, a manipulação de Helen, a autocomplacência de Liam, são apenas aspectos caracterizadores de personagens muito mais complexas que não aceitam juízos morais de nenhuma espécie. O que em todas elas se revela, de um modo mais ou menos acentuado, é como um jantar romântico pode transformar-se numa terrível cena de tortura em que o amor entre uns contrasta com o ódio entre outros.
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