quinta-feira, 9 de outubro de 2025

A JÓIA PESA CONFORME O USO

 


   Continuou quando assim se interrompeu. Começou quando assim se sucedeu, após o que ocorreria vezes sem conta. O vendedor, homem delgado e enrugado, fixava-a havia algum tempo do outro lado da praça vazia, elevando o punho direito no ar com movimentos ritmados. Quando a rapariga se aproximou finalmente, a figura estendeu a palma da mão onde se via um corte recente. Sorriu-lhe. Tem aí mais uma linha, retorquiu ela. De vida ou de morte? Cortou ou acrescentou dias ao seu destino? Ele sorria apenas com a boca, o olhar muito para dentro dela, como o de um pássaro ávido pelas migalhas que as amigas lhe atiravam no sonho da noite anterior, entre risos maldosos, indiferentes às suas lágrimas e às mãos tapando a cabeça, ela ajoelhada no chão. A mão revelou de um bolso secreto um par de leves brincos sem fecho feitos de madeira escura: uma réplica do continente africano. Ela colocou os dois continentes pelo preço de um em cada orelha, satisfeita. «Sempre quis uns destes. Como me ficam?» O homem recusou o dinheiro que lhe estendeu, mas segurou-lhe o pulso com uma das mãos e, com a outra, traçou em silêncio o percurso de cada uma das linhas da cliente. «Enquanto usares estes brincos não deverás ver-te ao espelho senão nos olhos dos vivos.» Sentiu um pequeno frémito quando ele lhe cerrou suavemente o punho e se afastou em silêncio. Tacteou o interior da mala à procura de um espelho riscado que trazia há anos, lembrança da loja de um museu. Tocou ao de leve nos brincos, como para garantir que ainda os trazia postos. Que bonitos, que bonita! Olhou as mãos. Viu a marca do velho transferida para si e tentou voltar o pescoço à procura dele mas os brincos, que por alguma razão não saíam, começavam agora de repente a crescer e a pesar mais e mais.

Gisela Casimiro, in Estendais, crónicas, Editorial Caminho, Abril de 2023, pp. 250-251.

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