quarta-feira, 8 de outubro de 2025

ACTO 4 – Os monólogos

 
Se há elemento diferenciador do Acto 4 para os restantes na peça “Órfãos”, esse elemento manifesta-se claramente nos longos monólogos distribuídos pelas três personagens. Às dúvidas sobre o que aconteceu a Liam, seguiram-se dúvidas sobre como proceder face ao sucedido. Este sucedido só é verdadeiramente esclarecido no monólogo final de Danny diante de Helen. Kelly oferece-nos vários elementos que ajudam à compreensão do estado em que se encontra este pai de família sobre o qual se exerce, ao longo da peça, uma profunda transformação. Opera-se nele uma metamorfose negativa, se assim podemos dizer, na medida em que descobre em si mesmo o lugar do mal, da barbárie, da crueldade, do horror. Neste sentido, podemos dizer que a consciência moral de Danny e os valores por si apregoados nos Actos anteriores foram pelo esgoto anunciado por Liam, o de uma cidade entregue à marginalidade.
O Danny corrompido é um homem que chega a casa e olha o seu espaço «como se não entendesse», «abre a boca para falar, mas não saem palavras», rejeita os abraços oferecidos pela mulher e não sente o corpo: «o meu corpo inteiro sente-se assim, a minha mão o meu braço, as minhas pernas os meus pés pescoço os meus lábios os meus olhos, tudo, tudo, tudo se sente…» um membro fantasma. Sentir o corpo como um membro fantasma é senti-lo como se ele já não existisse, o que induz uma dificuldade de reconhecimento de si mesmo marcada por um estado de torpor e de indolência consequente da experiência traumática de tortura para a qual foi impelido por Helen ao longo de toda a peça. Ele descobriu que é capaz do pior? E, por isso, não se reconhece.
Na relação de Danny com Helen opera-se uma cisão radical que resulta também de uma revelação: Helen não é, definitivamente, o que ele pensava. Lemos em Harold Pinter - autor com quem Kelly é por vezes comparado -, no ensaio “Escrever para Teatro”: «Revelar aos outros a pobreza que temos dentro é uma possibilidade mais do que temível.» O que Danny descobre em Helen é toda essa pobreza moral que a leva a defender intransigentemente o irmão ao mesmo tempo que empurra o marido para os abismos daquele, sem qualquer tipo de escrúpulo relativamente ao rapaz ferido que, afinal, era um homem torturado.
Mas não nos precipitemos no julgamento de Helen, também ela sofrerá as consequências de uma orfandade que é tanto filial como social (sugestão do próprio Dennis Kelly) e, em última análise, religiosa. Deus é o grande ausente nesta história toda que, a espaços, se aproxima na sua estrutura narrativa do que conhecemos da tragédia grega: família vs. Lei (a das ruas, neste caso, corresponde a uma degenerescência da ideia de cidade). O monólogo de Liam, o segundo que encontramos neste quarto Acto, é todo um tratado acerca dessa degenerescência.
Liam chega a casa como sempre chega: a porta bate com estrondo. A primeira pergunta que faz é dirigida a Danny: «Tudo bem?» Como pode esta pergunta ser feita por alguém que acabou de fazer o que fez? Só há uma explicação: insensibilidade. Se Danny não sente o corpo, Liam não sente qualquer peso na consciência. Isto não quer dizer que não a tenha, pois o próprio afirma que há uma parte de si que gostaria de amputar com uma faca. Que parte é essa? O que ele revela no seu discurso ao contrapor o «lindo mundo» do sofá IKEA à realidade conspurcada das ruas, a sua, é já indutor do que se segue, a revelação de um rancor, de um ódio secreto e profundo fundamentado na ideia de que as oportunidades fazem os indivíduos. Ora, ele não teve as mesmas oportunidades que Danny. A sua atitude de autovitimização mantém-se do princípio ao fim, ainda que no final sem qualquer tipo de tremor ou capacidade de manipulação, a ponto de se descontrolar de tal maneira que tenta agredir a irmã. O «pedestal de merda» em que ele coloca Danny é, no fundo, a justificação de que se serve para explicar a sua aversão e repulsa pelo abandono de que é vítima desde a infância, abandono dos pais, orfandade filial, e abando do estado, orfandade social. «Fomos abandonados», volta ele a declarar, «é como se tivessem sido todos teletransportados para outro planeta e nos tivessem deixado sozinhos com os monstros.»
O monólogo de Helen, o último, segue-se a estas declarações de Liam, pelo que não pode ser entendido sem essa conexão. É esta raiva desenfreada de Liam que a leva a confissão: «Eu ia partir com aquela família.» A partir daqui, torna-se evidente para Liam algo que lhe é insuportável: a ideia de que também a irmã, a sua única âncora num mundo tempestuoso, o podia ter abandonado. Não creio que Helen diga isto com o intuito de ferir o irmão, estou mais convencido que o faz porque não pode deixar de o fazer, de trazer a sua verdade e os seus ressentimentos recalcados à tona. O que emerge na narrativa nostálgica de Helen, a tal família com quem podia ter sido feliz, a tal família perfeita, tão diferente da que tinham os dois irmãos, é uma mágoa profunda pelo que podia ter sido e não foi. Não há alegria nem romantismo algum nesta nostalgia, há antes uma profunda amargura, a necessidade de finalmente tornar claro que foi forçada a ficar com o irmão de sangue: «Implorei-lhe que me deixassem ir com eles. (…) Supliquei e supliquei e supliquei.» A revelação é suficientemente dolorosa para que seja feita como arma de arremesso, o que seria redundante. O que ali se revela é antes um nojo pela oportunidade perdida, esse tipo de amargura que embrutece as pessoas ao longo da vida, as pessoas que sentem que podiam ter tido uma vida que não têm, uma vida melhor que lhes escapou. Para Helen é claro que os comportamentos impulsivos e violentos de Liam são a razão de ser da vida que não teve, o irmão é a cruz que ele tem carregado ao longo da vida. Está na altura de se libertar dessa cruz, de dizer acabou: «Deixa a chave.»

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