quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

GIL DE CARVALHO (1954-2025)

 


PEDRAS*

   Há três espécies na China. Reais, de sonho, e fortuitas. Destas, comprei uma em Lisboa a um Macaense. Era dos arrependidos. Durante anos fabricou pinturas - cópias - de boa parte dos artistas célebres (ou menores) do Sul e do Oeste que estiveram ou passaram por Macau. Refugiara-se na metrópole com uma pequena pensão por serviços prestados numa Câmara ou na Adminsitração das Ilhas. Na verdade, tinha sido durante anos um restaurador infatigável de pequenos recantos perdidos de Macau e adjacências, a pedido do Governo, de entidades particulares ou de beneremência, de Chineses ricos e mesmo do governo provincial ou central.
   Afirmou-me ter pertencido a um Manchu de Pequim. Viera aqui parar nos tempos da Monarquia. Chamava-se, a pedra, «O Sangue do Teu Mês». É que durante a última dinastia chinesa cerca de três quartos das nossas embarcações foram ao fundo, ou tiveram abalroamento, à vista dos esteiros de Cantão. Uma braça da Fábrica Real, com inscrição bordada a vermelho e ouro, ainda na posse de uma família portuguesa, servira de tapume. O bairro era intrincado e sujo. As ligaduras na cabeça, intacta, das raparigas ao cimo da rua, apertada, pareciam rasgadas. Os cafés vão abrindo com os velhos e uma ventoinha que outrora servia ao escrivão da terra. Para as mulheres muito novas, podia comprá-las em segundas núpcias. Toca um telemóvel no corredor bem iluminado, e a chamada é mesmo do outro lado da fronteira, nestes últimos dias. Urinar junto à entrada, e perto do tal seco manchu, dá sorte. Em Chengdu, eram reais as pedras.
   Em 1988, numa loja de antiguidades "da Muralha" abriram uma - das de sonho - bétulas brancas apareceram no interior muito ao longe. No último andar, panorâmico, do arranha-céus, despiu-se e mostrou o morcego voando muito alto. Uma sessão privada com a cordilheira por trás. Aqui, em Ribaneira, gravei esta última.

* Las "piedras de sueño", "de nubes" o "de viaje" (un viaje extático) comezaran a extraerse en el siglo XVIII de las canteras de mármol de una montaña de Tali, en lo que hoy es la provincia de Hunán. Sus vetas evocan personajes, animales, paisajes cuyas formas y colores eran definidos por la obra del tallador. El reconocimiento de un letrado les daba el nombre, y el de los pintores calígrafos, la categoria de obra de arte. No se trataba, en ningún caso, de unjuicio meramente estético: la forma de las piedras y las figuras y signos que aparecem en ellas correspondem a las visiones y los princípios del pensamiento taoísta.

Gil de Carvalho, in A Cidade de Cobre, Edições Cotovia, Outubro de 2001, pp. 205-206.


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