domingo, 7 de dezembro de 2025

O SONHO DE ROSAURA

 


ROSAURA

A minha verdadeira vida não se desenrola num palácio
nem numa torre, nem numa casa pequeno-burguesa:
a minha verdadeira vida desenrola-se, na realidade,
num lager, num gelo tenebroso. No
barracão onde estou fechada, entra
uma réstia de sol, reflectida na neve. Lá fora
ladram os cães. Os SS ouvem gramofones.
Nas camaratas de enxergas, em fila, estão
estendidos os danados: brancos como de gesso sobre
cobertores cinzentos de pó gelado. Têm
os braços de fora, abandonados, os bracitos
mirrados.
Não podem soerguer os seus maciços crânios
descarnados; e olham
como cães que não sabem porque é que não se podem mover;
olham todos para um ponto, onde
aparecerá talvez quem os possa olhar, forte e livre;
talvez tenham que se preparar para o acolher,
e nas olheiras onde estão perdidos os seus olhos,
na arcada saliente dos dentes, vagueia
algo de indizível: um sorriso.
Eu também ali estou. Um esqueleto branco já quase
sem cabelo, na enxerga; tenho as pernas
destapadas, ténues como as de um feto, só
os nós dos ossos dos joelhos são grossos;
mantenho a face sem carne contra
o pano do travesseiro onde
já me precederam tantos que morreram;
mantenho apertado contra mim como um tesouro os poucos
objectos que me pertencem, alguns
trapos, uma fotografia... E também eu, com os brancos
ossos do meu crânio, sorrio.
Já não somos homens; já não temos sequer
a vida à deriva dos animais; somos
coisas de que só os outros podem dispor.
Devemos fazer asco, para melhor
sermos usados por quem o quiser; porque
uma só liberdade nos resta: a de trairmos.
E, de facto, cada um de nós acalenta,
com o seu ligeiro bafio de doente das vísceras,
o desejo de poder finalmente piscar o olho
aos seus senhores, que nos vêm condenar.
Queremos ser nós os primeiros ajudantes
dos nossos assassinos, que inventaram
complicados mecanismos para nos matarem juntos.
Portanto será preciso rapidez e habilidade
no marchar em fila, nus,
entre as redes, em direcção à casernazita
onde foi montado o forno crematório; será preciso
entrar em ordem, evitar amontoamentos;
será preciso mostrarmo-nos ágeis e diligentes, até onde
os nossos corpinhos martirizados o permitirem.
É a hora em que se espera; e o sol,
como num dia qualquer ilumina por pouco
o nosso barracão; uma tarde inteira
e uma noite inteira para viver! É muito,
e preparamo-nos para as gozar, sem falar
entre nós, porque o nosso
verdadeiro interlocutor é o dono que decidiu
a nossa morte: e cada um de nós tem a certeza
de ser o seu benjamim.
Assim, pouco depois, numa aldeia
longínqua, tocam os sinos.
A seguir volta o silêncio. Do sol
fica uma última réstia perdida
nas paredes enferrujadas. Estranhamente
o silêncio prolonga-se - quando, por volta dessa hora,
habitualmente os soldados começam inocentes os seus coros.
Durante meia-hora, uma hora, pode prolongar-se aquele silêncio.
Depois, quando ainda não se sumiu de todo o último indício
da luz, eis que se ouve um canto.
Mas é um canto diferente: não é dos sicários,
o dos anjos dos donos...
É um canto já ouvido em criança
quando a Espanha era livre e nos municípios
havia bandeiras vermelhas. Esse canto
avança: torna-se cada vez mais distinto; é um número
imenso de pessoas que o canta: parece
uma maré, que avança e invade pouco a pouco o lager.
Ei-lo, ribomba sob as paredes
do nosso barracão; eis que, arrombadas,
se abrem as portas; e, cantando,
entram os operários. Têm bandeiras vermelhas
apertadas nos punhos, com as foices e os martelos;
têm as metralhadoras debaixo dos braços; têm lenços
vermelhos atados ao pescoço, sobre os colarinhos enegrecidos
dos fatos-macaco; trazem roupa, capotes,
alimentos; eis que vêm até nós, abraçam-nos, beijam
os nossos rostos sem carne, as nossas
carnes putrefactas, soerguem-nos, amparam-nos, como irmãos,
dão-nos roupa, ajudam-nos a vestir;
oferecem-nos alimentos; deitam-nos vinho
nos cantis; bebem connosco, brindando; e se nos
vêm as lágrimas aos olhos, também eles choram
de alegria, voltam a abraçar-nos. "Estão livres" - repetem-nos,
como se já não fôssemos capazes
de perceber estas palavras - "Estão livres!"

Pier Paolo Pasolini, in Calderón, tradução de Mário Feliciano e António Barahona, Artistas Unidos, Cotovia, Março de 2007, 137-140.

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