«As fontes duma fábula são coisas difíceis de conhecer.» - escreveu Italo Svevo. Mas acrescentou: «Com uma fábula demonstra-se aquilo que se quer, desde que se queira.» A fábula será um mero artifício literário, mas é um artifício especial. Se, por um lado, exige ao leitor um trabalho de construção de sentido, trabalho esse que dificilmente resistirá a interpretações alheias à intenção narrativa, por outro lado, sendo da sua própria essência ampliar o campo hermenêutico, ela pode reduzir a função expressiva à mera condição de alegoria moral ou crítica. A fábula é, por isso, uma experiência limite ao nível da comunicação e do próprio exercício da linguagem. Nesse sentido, é talvez o género de composição literária que mais se aproxima da poesia. Não estranhemos, então, que com alguma frequência os poetas se sintam inclinados para a fábula. Mais recentemente, tivemos em Portugal duas agradáveis incursões pelo território ambíguo da fabulação poética: Bestiário, de José Alberto Oliveira (n. 1952), e Aracne, de António Franco Alexandre (n. 1944). Este último é um caso especialmente interessante, dada a excelência com que o autor de Oásis (1992) tem experimentado na sua poesia múltiplas formas de expressão lírica. Em Aracne é um aranhiço quem nos fala «da arte, dos mistérios / da sexta dimensão, e outras lérias / de quem já não tem fio, mas tem ideias». (p. 17) A lírica, com enredos frequentemente amorosos, mistura-se aqui com a narração de uma espécie de balanço pessoal de conotações fortemente críticas e, por vezes, morais: «fico a pensar se não teria sido / melhor ter construído uma doutrina / em duro nylon ou arame fino, / um método qualquer que se pudesse / meter em livro e ser grande sucesso, / ou dar em conferências no circuito / do sacro ministério educativo; / ter escola, discípulos, amigos, / em ameno colégio reunidos / por insensatas máximas atléticas, / um cânone só meu, frases poéticas, / tudo bem embrulhado num novelo / de onde se visse a salvação das gentes, / ou mesmo, à transparência, o fim do mundo.» (p. 41) O poeta como que se faz passar, desta forma, por «um aracnídeo inadaptado» que tece a sua «teia sem enredo» - os seus poemas -, onde poderá ser humano, pois «Ser outro é privilégio de quem tece / na face do destino um transparente / véu, e ao vão casulo / prefere a superfície de uma folha». (p. 23) Assumida a deslocação, arquitecta-se, pela linguagem, pelo trabalho da linguagem, a metamorfose que lhe trará a humanidade. A fantasia que compõe a fábula é, no fundo, a do jogo que o poeta trava com a sua própria condição de "ser especial". Temos assim que «o baile dos mosquitos», a «soirée das sanguessugas» ou «o hit mais recente da cigarra», facilmente adquirem, na ironia alegórica de que são compostas, uma expressividade metafórica tipicamente poética. Para que no fim, nosso igual, talvez nos vença ou se deixe vencer, e nos pertença com a vaidade que lhe vem de ter o sábio coração de um aranhiço.
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