quarta-feira, 3 de novembro de 2004

O Coração De Sábado À Noite

Depois de Levadas, já este ano, e Büchlein für Johann Sebastian Bach, no ano transato, Manuel de Freitas (n. 1972) volta a publicar um conjunto de poemas em pequeno formato na editora Assírio & Alvim. Poucos autores, suponho, poderão dar-se a tais luxos. Mas só pode constituir motivo de satisfação que haja quem possa fazê-lo. Parece-me cada vez mais inevitável que esses livros venham a ser publicados em conjunto, mais tarde ou mais cedo. Toda a poesia de que são feitos é de uma tal coerência que um título novo pouco acrescenta ao seu precedente. Não se pretenda notar na constatação do facto uma qualquer crítica mais depreciativa. Antes pelo contrário, pretendo apenas sublinhar uma maturidade poética que tem vindo a patentear-se na obra de Manuel de Freitas desde o primeiro livro. Trata-se de uma poesia que comporta uma atitude ética perante a vida e, por arrasto, uma pose estética perante a criação. Por isso retoma, frequentemente, a narrativa das «noites», entre amigos, conhecidos e outros que tais, nos bares e nas tascas de Lisboa, onde se procuraram as receitas para o esquecimento. É o que volta a acontecer com este O Coração de Sábado à Noite, construído, desta feita, em torno da música de Tom Waits. Recorde-se, por curiosidade, que desde Música Antológica & Onze Cidades (1997), livro de Rui Pires Cabral (n. 1967), que a música, mormente a de cariz mais popular, vem aparecendo, em várias das mais novas vozes poéticas portuguesas, como referente à volta do qual e a partir do qual se constrói o poema. Neste caso específico, os títulos das canções de Tom Waits funcionam como «boleias» para a «evocação» de situações, pessoas e vivências. Mas também parecem funcionar como ambientes contextuais com os quais o poema estabelece uma espécie de diálogo. Veja-se o caso deste brevíssimo poema que leva o título de uma canção, Martha, do primeiro álbum do songwriter aqui decalcado: «Perdi o teu número.» (p. 26) Tal brevidade oferece-nos a matéria fundamental de que são feitos estes poemas: o sentimento de perda. Principalmente a perda do amor, da capacidade de amar ou daquilo que se tomou por ser amor: «Tem sido a estória da minha vida. / Destruir pequenos corações / com o gelo inábil destas mãos. / Queixam-se ou saudosos partem / os corpos que julguei amar.» (p. 8) Mas talvez o aspecto mais cativante na poesia de Manuel de Freitas seja a forma escolhida para rememorar o tempo perdido, sem com isso se comprometer com a nostalgia que mora escondida no interior dos versos. Há qualquer coisa de perverso nisto: poemas que lembram noites onde se procurou esquecer. Esta nostalgia não é assumida, bastas vezes tem sido negada e se tem procurado evitar. Mas, quer o poeta queira quer não queira, ela é mais forte do que ele e irrompe dos versos sem grandes cerimónias: «Não é fácil resistir a tudo / o que nos roubam. / Tempo, memória, mundo. / Toleramos o insuportável / com insuportáveis venenos. / Até melhor ordem, se houver. // Noutras casas (lembro-me) / éramos mais, bebíamos / apressadamente a juventude. / Mas a vida – chamemos-lhe / assim – separa os que se juntam, / gosta de abismos fáceis.» (p. 21)

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