Há livros de poesia que, se não nos convencem pelo aspecto organizado do todo ou pela homogeneidade do registo, cativam-nos pela inquietude que expressam. Essa inquietude, no verso, só tem uma saída, que é a da sua própria natureza: disparidade. Nesse sentido, a poesia de Manuel Cintra (n. 1956) é até bastante coerente. Parecendo inscrever-se neste último território da desigualdade, apresenta-se-nos como uma poesia heteróclita de quem não pretende senão dar vazão, em jeito de catarse, à essência contraditória dos sentimentos. O título deste seu mais recente conjunto de poemas acaba por ser paradigmático do que acabei de afirmar: Não Sei Nunca Por Onde. Deixar claro, logo à partida, esta noção de indefinição, ambiguidade ou ambivalência, só pode contribuir para a identidade de uma poesia que será, sobretudo, um retrato da maneira de sentir do seu autor: «Não trago nada. / Não sou nenhum oceano, / não venho para te afogar. // (...) // Não trago nada. Sou só água. Venho para te afogar.» (p. 7) Daí que encontremos, neste livro, a expressão duma relação com o mundo que não é pacífica, que não pode ser pacífica, porque atormenta, magoa e deixa na dúvida aquele que traz «na alma uma dor quadriculada / cheia de estrias e de rasgões.» (p. 9) Ao negativismo, digamos assim, que emerge dessa relação com o mundo, «este mundo moribundo», «rodeado de chacinas longínquas e burlas próximas», um negativismo que tem a sua matriz em razões de ordem política, acrescenta-se ainda o «cansaço» e o «sufoco» de quem não compreende a voracidade dos dias e a vacuidade de sonhos a que essa voracidade nos condena: «(...) sento-me sobre esta rocha, / e logo o silêncio se deixa invadir / pelo resvalo das pedras em Sarajevo, / pelo uivo da corrida das mulheres em Grosny, / pelo martelar sincopado dos corações dos velhos em Israel, / pelo áspero pulsar do sangue das crianças em Angola, / pela lengalenga revoltada das mulheres da Birmânia, / pelo borbulhar dos corpos flutuantes na Índia, / pelo soco louco de um corpo asfixiado no Japão, / por almas que gemem em uníssono a próxima vítima de sida, / amanhã de manhã, agora, daqui a três minutos e meio, / logo após os três contágios executados com rigor / ao longo desta frase pouco longa.» (p. 32) Note-se a inclinação para a prosa (Ruy Belo é clara referência nos poemas mais longos), que, neste livro, balanceia com poemas mais curtos de excelente acabamento. Balanceamento esse similar àquele que “opõe” o grande mundo social ao pequeno mundo familiar, lugar de afectos luzentes que tornam a vida mais respirável: «É que por muito turvo que tudo esteja / tu és loira. Tu és sol. Tu és madeixa, filha minha. / E o mundo / é cabeleira que caminha...» (p. 42) Curioso notar que já em Do Lado de Dentro (1981), aparecia na poesia de Manuel Cintra esta outra forma de respirar, «esta vontade de que a vida sejam vidas» (p. 37).
Sem comentários:
Enviar um comentário