quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

Biologia do Homem

A acreditar em Jorge Reis-Sá (n. 1977), e não há razões para o contrário, Biologia do Homem, o seu mais recente livro de poemas, «demorou anos a ser escrito.» No caso, terá demorado três anos. Já que «o poema mais antigo é de 2001». Não eram necessárias tais considerações, para perceber o cuidado na organização do volume. As duas partes que compõem Biologia do Homem (Caminho de Candeeira e Força de Coriolis) começam, justamente, com dois poemas que, em diálogo, dão uma noção de continuidade a todo o conjunto. São dois poemas que, de certa maneira, sintetizam uma ars poética que tomaremos como fundadora do que o livro tem para nos oferecer: «Não existe num verso nada de útil à salvação do mundo. (...) // (...) O poema é circunstância de lugar / em imagens atiradas ao chão, reduz à sombra o sol. A casa / essencial, a do poema, memória e salvação de um homem.» (p. 13) «Todo o poema é circunstância de um tempo e de um lugar. / Todo o poema é memória dessa circunstância.» (p. 33) Temos assim que o poema não salva o mundo, mas pode salvar um homem. Pode salvá-lo, claro está, enquanto receptáculo de memória. Registe-se o facto do primeiro livro de poemas de Jorge Reis-Sá se intitular à memória das pulgas da areia (1999), o que nos permite deduzir do lugar fulcral que a memória ocupa nesta poesia. Mas aqui a memória não é meramente entendida num sentido autobiográfico, aquele que me parece estar mais presente na primeira parte do livro: «Gastei tudo o que uma palavra pode / dizer porque esqueci a sua memória. Gastei-a em maus / poemas e em maus romances, poemas e romances com / a foz ao fundo e a mãe segurando-me o corpo pequeno / sobre o muro que ladeava a praia.» (p. 26) A memória pode também ser entendida como experiência de alteridade, ou seja, não apenas como revisitação do nosso passado, mas também como projecção do futuro através da memória daqueles que ainda nos são presentes e nos servem de referência. Só assim poderão ser entendidos estes versos que levam o título Da Felicidade: Urbano Tavares Rodrigues: «A idade toma conta de nós, torna-nos / na realidade a maior ficção, noto agora. Velo o meu / passado junto ao sol e sou pardacento e quente como / este fim de tarde de trovoada. E feliz. / Porque mesmo / cansado, mesmo com mais passado do que futuro - / tenho de ser realista, pragmático, nunca me conheceram / floreados sobre a morte: nunca acreditei, não vão ser / os anos e a sua persistência a quebrarem-me a convicção...» (p. 48) Num poeta nascido em 1977, estes versos seriam de uma presunção tremenda. Não fossem eles antes um olhar sobre a memória de um outro, desafio à imaginação do leitor e, principalmente, à imaginação do próprio poeta. Temos assim duas maneiras de encarar a memória que não passam somente pelo elogio fúnebre do passado, mas dão corpo ao exercício dos afectos através de um acto de lembrar que não é apenas um repositório de imagens perdidas. É, também, a construção permanente do próprio futuro. Porque, como diria Santo Agostinho, só pela «força da memória» poderei meditar «as acções futuras, os acontecimentos, as esperanças».

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