sábado, 11 de dezembro de 2004

Pelo Deserto As Minhas Mãos

A poesia é também o resultado de múltiplas formas de resistência. Podemos falar de resistência política, assim como de resistência espiritual. Hoje em dia, convenhamos, é também uma forma de resistência escrever poesia. E esse é, principalmente, um modo de resistência espiritual. Ainda mais, quando se trata de uma poesia completamente indiferente a supostos cânones, indefinidas modas ou, se quisermos, tendências estéticas de circunstância. Falamos de resistência. Mas resistência a quê? À pressa e ao desassossego das cidades, à improvidência dos homens, à desaprendizagem da «sublime auscultação da Terra» (p. 21). Em suma, resistência à indiferença, à falta de espanto, ao vazio emocional com que os homens parecem viver as misérias quotidianas. Na poesia portuguesa dos últimos tempos, há um conjunto de poetas cuja resistência espiritual, pela poesia, está mais ou menos demarcada pela vivência do sagrado. Referiremos, a título de exemplo, Daniel Faria (n. 1971 – m. 1999), José Tolentino Mendonça (n. 1965) e Carlos Poças Falcão (n. 1951). Um outro exemplo, talvez menos conhecido, é o de Victor Oliveira Mateus (n. 1952). Poeta de formação clássica, a sua poesia vem denotando desde o primeiro título – Nas Águas a Luz Suspensa, Minerva, 1998 -, algumas inflexões na forma que, diga-se, em nada têm prejudicado a sua incessante busca de sentido. Porque, no caso, é disso que aqui se trata: uma busca de sentido, de cariz mais ontológico que religioso. Em Pelo Deserto as Minhas Mãos, somos embarcados numa Viagem por terras egípcias. «A voz da grande Kolthoum vinda de uma janela num cântico apaixonado ao Nilo» (p. 51) e, sobretudo, a «fértil aridez do Deserto» (p. 11), são o cenário duma Viagem ao mesmo tempo física e interior. Os dois planos como que se complementam nesta poesia, já que o corpo físico que retrata é «não o corpo fardo, prisão, informe desejo que a si basta numa infindável corrosão de tudo, mas um corpo luz, amigo, que, sorrindo, aquilo que o excede a mim entrega». (p. 33) O Deserto aparece, desta forma, como o lugar privilegiado para um reencontro com as forças misteriosas e ocultas da Terra. Ao desalento, à melancolia, à lamentação, de uma vida que «não se resolve nunca, ou melhor, resolve-se aos poucos», a vastidão do Deserto responde com a lembrança de «coisas antigas, tão antigas que só então nos iluminaram». (p. 31) É nessas «coisas antigas» que Victor Oliveira Mateus vai procurar a «forma mais pura» dos afectos. O poeta, o Viandante, «pequena Viagem dentro de outra bem maior» (p. 61), estará então em condições de nos revelar, em êxtase, qual místico da Terra, pela poesia, a «oculta ressonância» que habita «no interior das coisas». (p. 29) Este é um outro Caminho para a resistência, um Caminho cujo combate maior é travado no âmago de cada um. Podemos desconfiar desse Caminho, julgá-lo antes como uma espécie de fuga. Não podemos negar-lhe, em todos os sentidos possíveis, a verdade com que se nos propõe.

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