quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

Invisíveis Correntes

Mais de trinta anos decorridos sobre a publicação do primeiro livro de poemas de João Miguel Fernandes Jorge (n. 1943), a sua poesia permanece com a mesma agilidade inquietadora de sempre. No seu mais recente livro, somos novamente enredados num labirinto de memórias vivas, múltiplas referências culturais, citações de lugares, jogos rítmicos diversos e processos de criação poética de tal forma personalizados que, independentemente das convicções estéticas de cada um, nos obrigam a reconhecer a consistência do edifício poético iniciado com Sob Sobre Voz (1971). Para o caso convém assinalar, desde logo, a originalidade do título. De poucos poetas portugueses poderíamos esperar que reconhecessem na designação de um formulário cambial uma tonalidade poética capaz de sintetizar os pressupostos dum conjunto de poemas. Faz todo o sentido que assim seja, já que uma das marcas essenciais desta poesia consiste na transfiguração de gestos usuais e quotidianos em quadros poéticos fortemente expressivos. Bastaria olharmos os títulos de alguns poemas para disso darmos conta. Ou então lermos alguns versos onde se torna explícito esse tipo de metamorfose: «Acaba de chegar da piscina. Quase noite. Os / holofotes estavam acesos. Quando está a nadar, a luz que / vem do fundo junta ao seu peito a delicada / pele de ninguém. / Tem a capacidade de buscar a beleza em coisas assim tão / simples; justificam o gosto que / sente pela poesia.» (p. 59) O poema é construído como se de um quadro se tratasse, num diálogo cujos contornos passam igualmente por um traço rítmico com uma dinâmica muito própria. A elipse marca o compasso, logrando o poeta, dessa forma, efeitos visuais internos bastante flexíveis. Repare-se, por exemplo, nos seguintes versos do poema ESTUDO DE UM CÃO, título que por si só remete claramente para a criação pictórica: «Tinham partido. Ficara o abandono. Um / homem pode destruir tudo dentro de si - / ódio, descrença, amor, a dúvida – enquanto se prende / à vida o abandono permanece // o cão ergue o olhar sobre a / terra, as vozes, a água.» (p. 24) Mas a conexão com as formas de expressão essencialmente pictóricas não se fica por aqui. O aspecto mais essencial dessa conexão parece-me inclusive outro: a montagem de um tempo próprio, através da colagem de vários elementos visuais com proveniências temporais diversas. Esta montagem não só sublinha os valores da vida quotidiana, como também fractura uma noção de tempo histórico tipicamente ocidental: «Noite, disse o anjo. Maria, José – pai de família -, o / centurião, a infância, o sonho de Herodes, a / fuga, a chegada a Saïs. / A mulher vestiu o casaco de raposa e no fim da tarde / de Kiev dirigiu-se para a praça central. Um / resto de cereal no fundo de um saco atraía-os; / esvoaçavam à sua volta e caíam os pombos na ceia de natal.» (p. 27) É igualmente importante sublinhar a inquietação emocional que estes versos denotam perante o tempo presente, até porque essa inquietação parte de uma concepção do tempo histórico que revela, mais ou menos nitidamente, posicionamentos filosóficos precisos. Pois que «nem em arte / se suporta já um final feliz» (p.15), dado que «tudo é ainda este país perdido, esta terra de restos de palavras». (p. 58) Em certo sentido, e sem me querer alongar demasiado, esta relação entre o espaço e o tempo na poesia de João Miguel Fernandes Jorge, evidenciada também na acumulação de citações de lugares concretos, lembra Martin Heidegger quando este afirma que, na sua essência decadente, a temporalidade compreende-se a partir da “quotidianidade”, na medida em que retira das relações espaciais os parâmetros da sua compreensão. Talvez por isso a poesia só faça sentido quando, fazendo uso das «palavras que todos usam» (p. 49), permita entender «o progresso de um rosto». (p. 77)

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