Encarnando o papel de guarda-livros, começarei por enunciar as seguintes contas: sete títulos publicados e um prémio literário em 2004. Não sou muito de embarcar na caravela dos fenómenos à portuguesa, mas contabilidade desta não é para qualquer um. Parece-me mais que justificada a atenção prestada a Gonçalo M. Tavares no ano há pouco findado. Mais que não seja porque, como já defendi algures, muita quantidade, se não traduz muita qualidade, amplia a probabilidade dessa qualidade vir à tona das exigências de cada um. Pelo que me toca, dou-me por mais que satisfeito. Familiarizado com a escrita de Gonçalo M. Tavares desde Livro da Dança (Assírio & Alvim, 2001), tenho-o para mim como um dos mais convincentes escritores portugueses nascidos na década de 1970. Dividindo-se o autor mormente pela poesia e pela narrativa, dificulta-nos catalogações de género que considero absolutamente dispensáveis para o caso. O que há de prosaico – no sentido mais literal do termo – na sua poesia, é proporcional ao que encontramos de poético na sua prosa. Mais: julgo mesmo que em nenhum autor português dos últimos anos convivem tão naturalmente os dois registos, em amena irmandade, acrescente-se, com a filosofia. Esta parece-me ser uma das características essenciais na obra do autor de Investigações. Novalis (Difel, 2002). Nunca resvala porém este casamento para uma reflectividade desmesurada, nem para uma debilidade contemplativa pouco mais que entediante. Antes pelo contrário. Tudo acontece tão naturalmente que nem damos por entrar no jogo - porque é disso que se trata - que o autor trava com o mundo, fazendo-nos sentir e pensar as coisas através do filtro da linguagem. 1, publicado pela Relógio D’Água no final de 2004, reúne, qual tratado, oito livros. Tantos quantos são os dias da criação, mais um outro pelo poeta devidamente explorado: «Acabemos o trabalho: é o oitavo dia, o dia da dança» (In Livro dos ossos, p. 53). Há nesta poesia uma toada fortemente alegórica que se constrói a partir de um olhar sobre os outros e sobre «pequenos pormenores» mundanos, não obstante aqui os outros serem mais entendidos no sentido heideggeriano, ou seja, como aqueles entre os quais aquele que observa também se encontra. Atentemo-nos, por exemplo, a este pequeno poema de Observações, o primeiro poema do primeiro livro de 1: «Como viver? Não há outra pergunta séria. / Um velho com o braço direito partido / folheia o jornal com a mão esquerda. / Penso: assim seria mais fácil. / O corpo a decidir por nós. / Olho para mim: os dois braços intactos. / Que fazer?» (p. 13) A observação de um objecto exterior ao sujeito, transforma-se rapidamente num pretexto para o sujeito se reflectir a si próprio, tornando-se este, dessa forma, num novo objecto de interrogações. Esta parece ser a condição essencial do poeta: aquele que olhando para o mundo, olha-se a si próprio como parte integrante e inseparável do próprio mundo. Mas olha-se a si próprio com o olhar daquele que se investiga e não com as olheiras daquele que se confessa ou daquele que se lamenta. Que nos informa então o poeta acerca do mundo? Informa-nos, entre outras coisas, que: «O Mundo está demasiado desequilibrado / Desde a última Guerra; há 50 anos que o Inferno / Deixou de vir do ar, e das bombas, / E se alojou nas lareiras domésticas» (p. 93). Ou ainda de que: «O mundo / Não é injusto, mas também não é teu mordomo; / Avança e é só» (p. 103). Ambas as citações fazem já parte do livro quatro: Frio no Alaska. Note-se a inclinação moral e ética, mas não pretensiosamente moralizante. Aliás, o último poema do livro sete, aquele em que o poeta nos diz de si próprio, é bem revelador da inquietação e das dúvidas que alimentam esta poesia: «Do teu esconderijo vê, e no teu esconderijo constrói, / sai dele apenas quando puderes dar algo aos outros. / Antes, é cedo demais, muito depois, é excessivo egoísmo. / Mas mesmo esta convicção não ajuda, não sei / Como viver, não sei o que é mais moral, mais ético, / Onde intervir, para onde olhar, ouvir o quê? / Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo» (p. 168). A dúvida aparece como um motor permanentemente ligado que não cabe à poesia desligar. Caberá antes à poesia, muito provavelmente, olear esse motor para que a beleza do mundo (aquilo que é amado) não seja engolida pela fome de certezas ou pelas convicções subjectivas de cada um. No final, fica-nos um conjunto imenso de epigramas, aforismos, proposições, alegorias, parábolas, paradoxos, para pensarmos e construirmos à nossa imagem e semelhança.
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