quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

Talismã

A palavra talismã remete-nos para um ideário mágico, porventura menos perdido do que se julga. Talismã é tudo aquilo no qual reconhecemos um poder, uma força, um encantamento, fora do comum. Por isso depositamos num talismã a nossa esperança, a fé que nos resta. O mais recente livro de poesia de Carlos Alberto Machado (n. 1954), autor que tem repartido a sua criatividade por vários géneros literários, levou por título essa palavra de conotação ritualista. Desde que Ernst Cassirer propôs a definição do homem como animal symbolicum, que não mais fez sentido reduzir o ser humano a uma natureza homogénea determinada pelo seu poder de racionalização da ordem cósmica. Talismã, o livro, parece afinar-se por esse diapasão, pois o poder que sublinha é o poder mágico da palavra: «podemos ficar pensativos e com um pouco de medo do poder da palavra / ou com medo de a usar indevidamente ou de mais ou de menos nunca sabemos» (p. 31). Antes de mais, é importante referir que este livro deve ler-se não como um conjunto de poemas avulsos, mas antes como um poema longo ou, nas palavras do poeta, como um livro de «poesia incompleta / narrativa sentimental». (p. 32) A questão que aqui se coloca é tão complexa quanto estimulante. Quase todos os poemas são escritos tendo em vista uma segunda pessoa, uma segunda pessoa cujo tom dos poemas sugere tratar-se do objecto amado. Estaremos assim na presença de mais um livro que se arrisca, com sábia magistralidade, no pantanoso território da lírica amorosa. Mas é também possível uma outra leitura, que, julgo eu, ampliaria a possibilidade de conexão dos próprios poemas. Às páginas 22 lê-se o seguinte: «onde guardas as palavras / que à noite viajam para mim / tantas perguntas por / perguntar quem és / tu?» Ora esta dúvida abre a leitura a um outro sentido. A relação que aqui se evidencia, mais do que uma relação de tipo amoroso, é a relação do corpo com a palavra. O “tu” a que se refere o poeta é aquele que talvez venha por uma palavra, é aquele que talvez regresse da sua ausência pelo poder da palavra, da palavra transformada num corpo ou, pelo menos, na palavra como possibilidade de reabilitação desse corpo perdido. Porque esse é o verdadeiro poder da palavra, o de tornar presente aquilo que está ausente, o de dar vida ao corpo morto, o de “essencializar” o próprio corpo: «estás no fim do mundo a gravar palavras na calçada onde brincam crianças e gatos / e eu fico no outro extremo a coleccionar os cabelos negro-rubros semeados em lençóis / colo dois no meu caderno a-quatro e enrosco palavras nas suas espirais perfumadas / enquanto espero que regresses amanhã no dorso de uma palavra-talismã esculpida em ónix». (p. 11) Há muito que não se sentia na poesia portuguesa uma tão conseguida convivência entre um discurso ao mesmo tempo repleto de imagens, mais ou menos oníricas, e claramente enraizado no mais quotidiano real. O que confere redobrada consistência a essa ideia de uma relação permanentemente exposta entre o corpo (real) e a palavra (imagem). Talvez devêssemos antes dizer fusão, pois não se trata já duma dicotomia. Trata-se antes de uma interpenetração orquestrada na própria prática da poesia enquanto acto íntimo de refazer o mundo. E esse acto é também o acto de o poeta se dar, obviamente, pela e na palavra.

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