quarta-feira, 19 de janeiro de 2005

SARABAND


Sou bergmaniano dos pés à cabeça. Quer isto dizer que sou do tipo introspectivo, meditativo, reflexivo, tanto quanto consigo ser emotivo, angustiado, nostálgico. Por outras palavras, sou um chato. Mas esforço-me muito para ser exactamente o contrário, embora deva avisar que viver 30 anos a lutar contra a sua própria natureza deixa qualquer alma num estado de irreversível agonia existencial. Saraband é um daqueles filmes tramados que Bergman foi realizando ao longo da vida com dois intuitos: arrumar os seus demónios pessoais (não me perguntem de que fontes seguras sei eu estas coisas) e lembrar-nos dos nossos próprios demónios. As personagens vivem todas numa incomensurável solidão. Umas, porque assim o quiseram as contingências do destino (se repararem bem não há qualquer incoerência na expressão). Outras, por vontade própria. Mas o que é a vontade própria de um homem? Talvez uma forma de disfarçar a angústia, essa angústia inevitável que reside dentro de cada um como se fosse a célula original da natureza humana. A vontade própria é, ao fim e ao cabo, o equívoco predilecto daqueles que optam por se enganar a si próprios. Há nisto uma espécie de instinto de defesa. Coloco as coisas nestes termos: quando afirmamos que fazemos uma coisa por vontade própria, no fundo não queremos admitir que foram as contingências da vida que nos levaram a agir desta ou daquela maneira. À liberdade de cada um, eu sobreponho a força dos acasos. Mas a vontade própria é também o acto pelo qual cada solista se evidencia no meio dos outros. Esses outros que são o nosso inferno, a última fronteira das nossas acções, assim como o princípio sem o qual o nosso brilho não seria notado. Um concerto para uma orquestra sinfónica, com quatro solistas, terá afirmado Bergman a propósito de Saraband. Faz todo o sentido. Temos Marianne (Liv Ullmann), perdida nas memórias de um passado que vai procurar resolver consigo própria. Primeiro, visitando o ex-marido: Johan (Erland Josephson). Já no final do filme, visitando a filha dos dois: Martha. Martha sobrevive à mais taciturna loucura internada num hospício. Com o corpo mergulhado no silêncio, será através do olhar que Marianne tocará na sua filha, esse olhar que diz o que nenhuma palavra consegue dizer. O cinema de Bergman sempre foi esta inefável poética do olhar. Já Johan, um pai voluntariamente isolado no seu casulo, vive afastado tanto quanto possível do olhar dos outros. Desse olhar que lhe denunciaria as fraquezas, as falhas, a magnífica confusão de um amor recalcado até ao limite do ódio. Johan, odiado por tudo e por todos, tanto quanto consegue odiar tudo e todos, é a imagem perfeita do pai cuja tragédia consiste em se auto-mutilar por dentro na exacta medida em que se impede de amar para fora. De amar, principalmente, Henrik (Börje Ahlstedt). Henrik é o filho amaldiçoado, prostrado no drama do abandono. Perdeu Anna, a mulher; nunca teve o pai, Johan; e está em risco de perder Karin (Júlia Dufvenius), a filha. Karin é uma espécie de Antígona, cuja vontade própria é constantemente posta em causa pelo sentido do dever para com o pai. Há qualquer coisa de obsessivo naquela relação quase incestuosa. Pela parte de Henrik, trata-se de um amor que se mistura com o medo fatal do abandono. No caso de Karin, é o dever que a oprime. O maldito dever que impede a tal vontade própria. Observando-os a todos, está a falecida Anna, mãe de Karin. Apesar de ausente, Anna é das personagens mais presentes ao longo do filme. Sabemos do seu rosto por intermédio de uma fotografia, sabemos da sua entrega por intermédio do desespero de Henrik, sabemos da sua boa vontade por intermédio das palavras elogiosas do misantropo Johan. A presença ausente de Anna lembra-nos constantemente o sentido que espera cada um daqueles corpos derrotados pela inexorável solidão. Se Sören Kierkegaard realizasse filmes, tenho quase a certeza que eles seriam assim: como Saraband, um filme de Ingmar Bergman.

Sem comentários: