O poema medieval Stabat Mater, musicado entre outros por Pergolesi, é o fio condutor do mais recente livro de Manuel de Freitas (n. 1972). Intitulado A Flor dos Terramotos, este pequeno livro surge na prossecução de outros que Freitas tem vindo a publicar, ora em edição de autor, ora em projectos editoriais diversos, como é o caso da Averno – editora que o próprio conduz. Ao supracitado poema, um hino cuja intenção é descrever a dor da Virgem ante a crucificação do filho, o poeta foi colher os títulos das quatro partes que compõem o livro: O Quam Tristis Et Afflicta, Pro Peccatis Suae Gentis, Juxta Crucem Tecum Stare, Quando Corpus Morietur. A apropriação livre dos quatro versos permite organizar um conjunto de poemas cujo tom geral, não sendo propriamente o de uma oração, aproxima-se de um elegíaco mais denunciante que clamoroso. É importante referir, porque nada na edição nos informa disso, que a terceira parte deste livro já havia sido publicada em Junho de 2004 num opúsculo da Alexandria. Da edição original, limitou-se o poeta a suprimir um poema. Também no segundo conjunto deste A Flor dos Terramotos aparecem poemas anteriormente publicados na revista Telhados de Vidro (n.º 3), nomeadamente o poema No Primeiro dia de Maio e a sequência intitulada Passeio Alegre. Quanto aos restantes poemas, ficamos sem saber se se tratam de originais ou de reedições de poemas antigos. Seja como for, há motivos mais do que suficientes para nos atentarmos a esta flor de ruínas. As balizas desta poesia já estão por demais definidas: a morte, a ruína, os lugares urbanos onde a decadência se mostra mais explícita, as tabernas, a música. Sobre cada um destes elementos, constituintes de um tom geral de desalento e desesperança, haveria muito a dizer, mas há algo mais que emerge nestes poemas. São múltiplas as referências, ainda que subtis, à prática da poesia, ao acto de escrever poemas, à condição do poeta num mundo onde se procura fintar a morte com a ilusão de que se vive. Os dois últimos versos de Pompe Inutili, último poema deste volume, são esclarecedores do pathos que meneia a poesia de Manuel de Freitas: «A sabedoria é inútil. / A poesia também» (p. 51). Aliás, todo este poema, que considero dos melhores (e também dos mais estranhos) escritos pelo autor até à data, é revelador do peso radical e limite que a consciência da morte imprime a estes versos proposicionais e definidores da (des)razão de ser humana: «Ninguém nasce…»; «Só os mortos, verdadeiramente, / existem.»; «Despedem-se muito mal, os mortos.»; «São terrivelmente reais, os mortos.»; «Talvez um dia, porém, venham a / assinar um poema assim…». É neste sentido que as tabernas, lugares ao mesmo tempo de perdição e de salvação, "paraísos ou infernos artificiais", aparecem não só enquanto lugares de poesia, onde o horror se manifesta e evidencia, mas também como lugares que nos transportam para um tempo perdido, esse tempo que nos lembra da nossa própria perdição: «Há um lugar que escreve sobre / a ausência de todos os lugares. / Tonéis de vários tamanhos / onde inscrevi, por distracção, / o único nome verdadeiro. / Estou a falar, naturalmente, / de tabernas. / Mas talvez não seja apenas isso» (p. 21). É nas tabernas que a poesia emerge como espelho de um tempo em ruínas, mas é importante dizê-lo: também a ruína pode ser suína, quando se limita a cair bem no poema que pretende cair mal na leitura. É que todo o poema que pretende, faz o pino, ou seja, revolve o seu sentido de poema: não sendo útil, nem por isso deixa de parecer arma (ainda que não química). O que nos admira é que nesta época de "tanta" devastação (outras terão sido mais devastadoras) ainda haja tanto poeta a publicar, a criticar, a ensaiar poesias. Ou melhor, já não admira. Somos todos um corpo que caminha para a morte, é certo, mas há os que caminham torpes, os que caminham curvados e os que caminham verticais. Haverá diferença entre uns e outros? Perguntem aos poetas.
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