A esta altura do campeonato já toda a gente sabe: Diário Remendado, de Luiz Pacheco, um dos livros do ano de 2005. Para mim, o livro. Porquê? Pelas razões que passo a condensar. Costumo distinguir os bons dos maus livros como quem distingue alimento de pastilha elástica. O bom livro alimenta-nos. O mau livro mastiga-se e deita-se fora. Um livro que nos alimenta é um livro do qual retiramos ensinamentos, ideias daquelas que ficam para a vida, lições. Ora, o Diário Remendado, de Luiz Pacheco, é uma lição do princípio ao fim. Não necessariamente uma lição de vida, embora não me chocasse que assim fosse entendido. Uma lição de vida não implica o desejo de se ver uma vida imitada. Se há vida que poucos, hoje em dia, estarão dispostos a imitar, como se isso fosse possível, é a vida de Luiz Pacheco. «Que a minha vida é um romance o dia e noite, acordado, bêbado, a dormir sonhando, eu o sei melhor que ninguém» (p. 41). Por certo um romance, mas um romance deveras desconfortável, sem os cómodos e consolantes abrigos da vida burguesa para a qual somos educados desde pequeninos. Lição, então, de quê? Direi: lição de resistência. Os cinco anos abarcados são mais que suficientes para percebermos, com clareza inédita nas obnubiladas letras portuguesas, o que é resistir num meio onde a liberdade é paga a peso de marginalidade. Chamemos-lhe libertinagem, conceito bem mais interessante do que o de escritor marginal ou maldito. Estes, mais românticos, ficam sempre aquém daquele, muito mais da acção. Leve então o libertino o rótulo de escritor falhado. Diz-se de Luiz Pacheco, naquele tom de lugar-comum que só não causa urticária a quem se escude noutro lugar comum - se é comum, alguma verdade há-de ter -, que passou ao lado duma grande carreira enquanto escritor. Editor relevante, crítico esclarecido, tradutor esforçado, mas pouco mais que escritor falhado. Alguém que explique porquê. Talvez por não ter apanhado a carreira que se encarregou de acusar aos outros, como quem aponta as nódoas que cada um traz na lapela. Refiro-me à carreira dos atropelos, das casacas viradas, das ambições estupidificantes, das «ciumeiras» idiotas, das conveniências, dos comedismos, da «vã cobiça», da «mediocridade triunfalista». É óbvio que os passageiros da “grande carreira” têm modos automáticos de lidar com personalidades assim tão inconvenientes: «enquanto eu escrevo gracinhas inócuas eles batem palmas. Quando assumo uma atitude frontal de denúncia e desmistificação encolhem-se» (p. 240). Eis parte da lição: estar atento aos meneios dos "inimigos". E o escritor não se acanha na revelação do seu lado mais perverso: esquemas, travessias, bisbilhotice, sacanice, insinuações, o jogo de anca do costume: «conservando uma aparente dignidade, gravidade, passando de lado, ignorando, driblando» (p. 105). Porque é bom de ver que o objectivo, ao fim e ao cabo, é o mesmo para todos: a maldita da posteridade. Mudam os meios, ficam as vontades. Daí que a advertência seja, e bem, deixada para o fim, para que melhor nos lembremos dela: «Se alguém ler estas páginas (mas eu sei lá bem onde é que isto irá parar), fica com algumas chaves na mão. Não todas. Contraditórias, muitas» (p. 181). Em posfácio, o “fixador” da obra resume bem estas páginas: «O que impressiona logo é a luta para viver só escrevendo, ser escritor a tempo inteiro, fazer da escrita a primeira e única profissão. A dependência do álcool, a vida afectiva e sexual, os filhos (o Paulo em particular), a preocupação obsidiante com o dinheiro, ou a falta dele, tudo isso parece estar subordinado a esse grande projecto individual: o empenhamento total na escrita» (p. 274). Entre 1971 e 1975, Luiz Pacheco publicou Exercícios de Estilo, Literatura Comestível e Pacheco versus Cesariny. Escreveu o Diário Remendado (grande título) e sabe-se lá mais o quê! Mesmo doendo-me os insultos a O’Neill, mesmo esforçando-me para aguentar um ego sem mensura, mesmo vendo pelo lado da piada o tacticismo sem retorno de por aí além, mesmo enojando-me com certas leviandades para as quais o estômago ainda não ganhou calos, não hesito: grande lição de resistência. Dela faço meu, que os livros também servem para estas coisas, um sonho a trazer na agenda: «desliboetizar».
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