quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

UM BEIJO QUE TIVESSE UM BLUE

Publicada pelas Quasi Edições em Novembro do ano passado, esta antologia poética de Ana Cristina Cesar (1952-1983) – eu prefiro sem o acento no «e» - tem o mérito de nos introduzir na obra de uma das mais fascinantes poetas brasileiras da segunda metade do século passado. Estreada em livro com Cenas de Abril, decorria o ano derradeiro da década de 1970, Ana Cristina Cesar viria a publicar pouco por culpa da morte ocorrida em 1983. Repare-se que entre a data do primeiro livro (1979) e o momento do suicídio (1983) decorreram apenas quatro anos, o que em vida se traduziu noutros tantos livros de poemas: Cenas de Abril, 1979; Correspondência Completa, 1979; Luvas de Pelica, 1980; A Teus Pés, 1982. Postumamente, foi editado um volume de Inéditos e Dispersos que a autora da presente antologia, Joana Matos Frias, optou por distribuir cronologicamente por entre os poemas retirados das colectâneas acima referidas. O resultado é um pouco confrangedor, já que tal opção dá-nos conta de uma obra cujos fragmentos de melhor qualidade terão permanecido na gaveta por decisão da própria autora. De facto, o que esta selecção acaba por revelar é precisamente que os melhores poemas da poeta brasileira foram os que ficaram por incluir nos volumes editados em vida. Isto obriga-nos a uma questão que não é de todo desprovida de sentido: deveremos considerar a obra de Ana Cristina Cesar em função dos dispersos e dos inéditos ou, por outro lado, a partir dos livros publicados pela autora em vida? Se tivermos em conta aqueles poetas cuja vida malograda levou a que, por circunstâncias diversas, o núcleo duro das suas obras tenha ficado por publicar, a resposta parece-me evidente. Mas aqui não se trata disso, trata-se antes de poemas que poderiam ter sido publicados em livro e não foram, supostamente, por decisão da autora desses mesmos poemas. Ainda assim, o que importa aqui relevar é o «informalismo» de uma obra cujas marcas essenciais resistem a qualquer discussão mais ou menos académica sobre o assunto. Dito isto, tentemos entender esta poesia no contexto dos chamados «poetas marginais» aparecidos em 1976 na antologia de Heloísa Buarque de Holanda - 26 Poetas Hoje. Herdeiros do peso concretista/experimentalista, de autores como Haroldo Campos, Décio Pignatari ou, numa fase posterior, Ferreira Gullar, estes «poetas marginais» caracterizaram-se sobretudo por uma tentativa de voltar a poesia para as temáticas basilares do quotidiano. No caso presente, essa tentativa não recusa, mormente nos poemas iniciais, uma dimensão lúdica e experimental da poesia, jogando com aliterações e cacofonias, ritmos caros aos concretos: «Só sou se sendo sou sido / Que espiadelas cancerosas. / Que que que sem inteiro. / Acintosos passos em direcção a outros passos. / De grau em degrau, / relativos nos engolimos como sopa» (p. 30). Não obstante, as inflexões notam-se muito mais nos poemas publicados em vida do que nos que ficaram por publicar. Aí encontramos de facto uma reacção ao que vinha sendo a poesia brasileira, à excepção de algumas vozes mais isoladas, através do uso de uma linguagem mais corriqueira, praticando o verso longo, livre, na “tradição” da geração beat, assim como no retorno aos ensinamentos dos modernistas pela mão da releitura de um Pessoa e de um inspirador Walt Whitman. Mas vejamos como é a própria poeta a resumir a salada: «discurso fluente como ato de amor / incompatível com a tirania / do segredo // como visitar o túmulo da pessoa / amada // a literatura como clé, forma cifrada de falar da paixão que não / pode ser nomeada (como uma carta fluente e “objectiva”). // a chave, a origem da literatura / o “inconfessável” toma forma, deseja tomar forma, vira forma // mas acontece que este é também o meu sintoma, “não conseguir falar” = / não ter posição marcada, ideias, opiniões, fala desvairada» (p. 88). O competente prefácio de Joana Matos Frias fala-nos ainda de: «linguagem coloquial e informal», «impulso intertextual crónico», «registos do tipo diarístico e epistolar». Lembro que de Ana Cristina Cesar tínhamos apenas disponíveis cinco poemas, incluídos por Jorge Henrique Bastos na sua antologia da Poesia Brasileira do Século XX – Dos Modernistas À Actualidade (Antígona).

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