Já toda a gente sabe a história deste Coisa Ruim, filme de Tiago Guedes e Frederico Serra que mereceu a honra de abrir a edição deste ano do Fantasporto. Também já toda a gente percebeu que parte do sucesso do filme está associado ao argumentista, o jornalista Rodrigo Guedes Carvalho. Não vou perder-me nos detalhes nem nas comparações com outros filmes do género. Na verdade, nem sei bem se é justo considerar-se este um filme de género. O que mais me agradou em Coisa Ruim foi precisamente essa indefinição. Há actores com excelentes desempenhos, óptimos cenários, uma banda sonora eficaz, um argumento… banal. A máquina promotora funciona com justeza: «não pretende ser um filme para provocar sustos, mas para abrir os olhos ao medo». Prendamo-nos a este último aspecto. O medo é hoje a sombra que o nosso quotidiano arrasta. O medo é o fantasma sempre presente - o fantasma do terrorismo, o fantasma da pandemia, o fantasma da catástrofe ambiental, etc. Não por acaso o cinema tem-nos presenteado com uma "panóplia" imensa de filmes onde o medo está no centro das atenções. O medo como ameaça oculta, o medo como princípio da manipulação dos povos, o medo como princípio da desintegração da harmonia social, o medo como fragmentação da verdade, o medo como motor de uma paranóia sempre ao serviço do consumo, o medo. Neste caso específico, o medo aparece numa das suas mais vetustas formas: o medo como objecto de prazer. Na verdade há toda um erotismo possível em torno do medo que passa pela atracção que sentimos pelo desconhecido, mas também por uma espécie de jogo de sedução com o inexplicável. Ou seja, em tempos niilistas, em tempos de uma razão onde o nada é a razão de tudo, a possibilidade de haver qualquer coisa para lá do nada alicerça um fascínio e uma paixão que podem tomar diversos caminhos. Notemos na proliferação de seitas, de sincretismos, eclectismos, na recorrência à mezinha e ao bruxedo quando nada mais nos ampara, notemos no gosto tantas vezes desinformado pelas artes dos astros e suas associadas (como se dos astros não se fizesse a ciência que se faz da terra). O que quero dizer é que o diabo está entre nós como nunca antes. Isto é: a morte declarada de deus, o declínio do religioso, tem vindo a moldar-se no culto do esotérico. O homem não consegue viver do nada no nada, o homem precisa de alguma coisa. Quem o afirma é um ateu convicto. As sessões espíritas são um sucesso, uma fonte de rendimentos extraordinária, os cultos do diabo, os rituais do demo, são bastante populares junto das camadas mais jovens, o satanismo, na sua forma mais desmaiada, faz as delícias de qualquer adolescente à procura de sensações fortes, ele é o metal satânico, o pop satânico, o flop satânico... Será por acaso que as estantes das nossas livrarias se enchem de livros esotéricos, livros sobre anjos caídos e alminhas perdidas? Códigos não sei das quantas, dragões não sei do quê, seitas das rosas e dos trevos e dos quatro ventos e o que lhes valha… Coisa Ruim vem em boa altura e cumpre: «abre os olhos ao medo». Tem pechas. Não responde, por exemplo, a isto: poderá um filme ser o que não é? Isto é, poderá Coisa Ruim ser Coisa Boa? O medo, o medo é coisa boa. Na verdade, também ele pode ajudar-nos a amar. Se eu não temer pelo outro, poderei eu dizer que o amo? Não é o medo que impede o amor, nem mesmo o medo que eventualmente sintamos de amar. Pois o medo de amar não é senão a confirmação do amor. Ter medo de algo é uma forma de afirmar esse algo que se teme. O que impede o amor é outra coisa que não o medo. Eu diria antes que o que impede o amor é o próprio amor. Mas isso é poesia que já nada tem que ver com as coisas do demo. Curiosidade: de medo se escreve demo, de demo se escreve odem, de odem se escreve doem e vice-versa.
Adenda: média de estrelinhas que Coisa Ruim mereceu nos jornais Público, Diário de Notícias e Expresso - 2,4.
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