É costume ouvir-se dizer que a poesia é a arte (literária) da concisão. Mais ou menos breve, o poema resulta, de facto, da capacidade de condensar o que, noutras condições, seria apenas exprimível com o recurso a formatos narrativos mais extensos. Em termos editoriais, há poetas que optam por coligir os seus poemas em colectâneas mais volumosas. Outros optam pela edição de menor fôlego, com resultados díspares e, por vezes, inquietantes. Manuel de Freitas (n. 1972), por exemplo, tem alternado algumas das suas edições mais avantajadas com outras onde, sob um determinado signo temático, procura abreviar a obra ao que poderia ser entendido como um conjunto, um capítulo, uma parte, de um livro mais abundante. Servem de exemplo títulos como Büchlein Für Johann Sebastian Bach (Maio de 2003), O Coração de Sábado à Noite (Outubro de 2004), Vai e Vem (com ilustrações de Filipe Abranches, Maio de 2005) e, mais recentemente, Cretcheu Futebol Clube (Abril de 2006), todos com o selo da editora Assírio & Alvim. Reproduzindo na capa uma fotografia lindíssima de João Freire Oliveira, Cretcheu Futebol Clube lê-se como um requiem à memória do músico cabo-verdiano Ildo Lobo. Trata-se de um pequeno livro, de uma beleza avassaladora, que mantém as coordenadas fundamentais de uma poesia desde sempre alicerçada no domínio da elegia. Este universo de Manuel de Freitas, onde a música «é a única razão que nos sobra», coloca-nos permanentemente, como nenhuma outra poesia portuguesa actual o logra, na presença da morte, da nossa inevitável finitude e colossal insignificância. Acrescenta-se ao álcool, às referências da deambulação nocturna (B. Leza, Cachupa), aos sítios de passagem (Largo do Conde Barão, Praça do Rossio, Caetano Palha), aos espaços culturais da capital (CCB, Coliseu dos Recreios), aos nomes dos companheiros de guerra (Jorge, Inês, Rui), aos utilitários quotidianos (Taki-Talá, Correio da Manhã), às canções, aos artistas, a utilização de vocábulos e expressões crioulas: manhã ká tem dia, sodade, estrela d’nada, bo dispidida, tchoro, morabeza, daki a nada. O ritmo, é mais de morna do que de funaná: «Abrem-se devagar os túmulos / - e entramos neles. / É o nosso ofício, talvez o único. /Esperámos, anos fartos, o vazio. / Não há engano possível, / não há regresso. Todas / as ilhas devagar nos mentem. // Dançava perto de ti, / talvez demasiado só, uma / estrela d’nada, bo dispidida. // Não me digas que não ouviste» (p. 17). Em formato literário similar (chamemos-lhe plaquete, pequeno livro, folheto, panfleto, tanto faz), este Tríptico do Narciso. Sendo Vítor Vicente (n. 1983) responsável pela editora Canto Escuro, onde já havia publicado em Abril de 2005 o livro Esses Dias – HenryKiller.Blog, trata-se de uma auto-edição. As epígrafes de Teixeira de Pascoaes, a abrir, e Nick Cave, a fechar, permitem-nos pensar num autor para o qual todos os diálogos são legitimados única e exclusivamente por aquilo que é enunciado. No miolo, três pequenos poemas onde o registo narcísico é adulterado por um saudável tom de auto-ironia. Mais autocrítico do que auto-complacente, este narciso «rimbaldiano atracado aos balcões de tascas e bares» é uma remistura de ovelha negra, com patinho feio e gato maltês. A vertente experimental dos três poemas adensa a ideia de um autor empenhado apenas nos «louvores ao escárnio» e «aos maldizentes». Faz muito bem, se dessa apregoada má relação com a civilização puder surgir o que de mais raro vai sendo nas letras portuguesas: o (des)compromisso com um mundo onde o eu resulta frequentemente de conivências pouco credíveis com os outros. Este narciso é o de Stirner, empenhado apenas na sua causa… puramente egoísta: «Eu nó cego de contradições. / Eu com um globo debaixo do braço / a estilhaçá-lo de encontro a uma parede».
Sem comentários:
Enviar um comentário