sexta-feira, 28 de julho de 2006

VICIOSOS


Os Viciosos
de Abel Ferrara
Não podemos pedir muito à História. Não é justo. Porém, o muito que nos ensina pode resumir-se a um único objecto: elaborar as perguntas correctas. A questão hoje já não pode ser sobre a natureza do mal, nem mesmo sobre a sua origem. Debalde muito se perdeu e nada se conquistou nesse campo de batalha. Origem e natureza, no que à matéria diz respeito, sempre andaram de mãos dadas. A questão a colocar deverá ser outra: como lidar com o mal? E esta não é outra senão a questão que desde sempre andámos a colocar acerca de nós próprios: quem somos? Perguntarmo-nos sobre o mal é perguntarmo-nos acerca de nós próprios. A História ensinou-nos que o mal não tem outra origem, ele é a essência da humanidade. Só quem se coloca no centro das suas dúvidas pode saber o que é o mal, só a esse o mal interessa, pois só a esse ele atinge. O que atinge o mal? A consciência do mal ele mesmo. Daí que ao mal possamos associar a linguagem, pois, como diria Wittgenstein, «os limites da minha linguagem significa os limites do meu mundo». No entanto, no mesmo Tratado, o filósofo austríaco negará à vontade o papel de suporte de um juízo ético. The Addiction, filme que Abel Ferrara estreou em 1995, parece contradizer esta ideia. O mal existe de sermos fracos perante a sua presença. Isto é, uma vontade débil é o que permite a manifestação do mal nos nossos actos. A vontade pode pois ser o alicerce do único juízo ético que vale a pena tentar formular: não clames, age. Dito de outra forma: não te deixes dominar por aquilo que te domina. Ou ainda: procura na vontade o domínio certo da razão errada. É à razão que vamos buscar o mal, é nela que reside a consciência de todas as possibilidades que negamos no momento em que praticamos uma acção. Lili Taylor, a Kathleen Conklin do filme de Abel Ferrara, é uma estudante de filosofia atormentada por questões similares a estas. Ética, moral, justiça, desaguam sempre na forma de lidar com o mal. O filme começa com imagens de crimes de guerra, situações pavorosas perpetradas por soldados americanos. Em 1995 ainda não tínhamos os atentados terroristas ao World Trade Center, talvez o mais exemplar dos gestos maldosos. Que se compare, só mesmo a máquina de morte que foi a II Grande Guerra. Digo-o pelo que tiveram de puramente racional, matemático até. São esses os fantasmas que consomem a personagem central deste filme. Ferrara aproveita os mitos ancestrais do vampirismo, refaz a tradição, reconstrói a história do mal. O mal é o vírus que nos circula no sangue, transmitido por contaminação. A filosofia? Só mais uma máquina propagandística ao serviço dessa contaminação. Socorro-me de um Dicionário de Símbolos: «O vampiro simboliza o apetite de viver, que renasce cada vez que se julga estar saciado e que se esgota em satisfazer-se em vão, enquanto não for dominado». Não é outra a nossa história. O vampiro é a própria natureza do homem elevado ao nada que é, o homem negando-se a si próprio, o homem temendo-se, não querendo ver em si a morte que caminha. Estamos mortos e mais mortos estamos se o não sabemos. O medo de morrer é já a nossa morte. Poderá ser outro o nosso mal? Há muitas citações neste filme de Abel Ferrara: William Burroughs, Sartre, Heidegger, Feuerbach, Proust, Kierkegaard… Não sei se também por isso o não devamos considerar mais um tratado em imagens acerca do mal do que um mero filme de vampiros. A angústia existencial que o ameaça não lhe nega a intenção, isto na exacta medida em que o torna intemporal. Mesmo tendo em conta que existem épocas mais sem tempo do que outras. A que agora vivemos, quanto a mim, já tem tempo a mais.

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