quinta-feira, 17 de agosto de 2006

ESSES DIAS

Tal como uma reprodução dificilmente fará justiça ao original, um livro que reproduza um weblog raramente logrará o efeito de leitura do suporte que o originou. Talvez por culpa de preconceitos como este, nunca me senti seduzido pela leitura de livros baseados em weblogs. Sobretudo tratando-se de um livro cuja essência sobreviva de um certo equilíbrio entre os ritmos de produção e de leitura. Ler diários não é propriamente o mesmo que ler um weblog, já que o segundo permite uma interactividade que escapa aos primeiros. Desconfio que O Ofício de Viver, de Cesare Pavese, ou mesmo o Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, teriam assumido outras direcções se os seus autores possuíssem e-mail e caixa de comentários num sítio onde tivessem publicado com uma certa periodicidade as entradas desses livros. À excepção das mil e uma pequenas histórias, de Luís Ene, pequena parte de um weblog que cheirava a livro desde o início, jamais me ocorreu adquirir um livro que estivesse acessível na rede. Li Os Dias Não Estão Para Isso, poemas que Nuno Costa Santos colheu no seu melancómico. Mas aqui o caso é substancialmente diferente dos demais, pois trata-se não de um weblog passado a livro mas de uma parte desse weblog posteriormente reorganizada tendo em vista um suporte editorial diverso. De weblogs como O Meu Pipi e o Rititi, nunca fui fã; prefiro o Gato Fedorento em DVD; o Barnabé e o Dicionário do Diabo (este último, de Pedro Mexia, aparecido em livro com o título Fora do Mundo), li religiosamente enquanto weblogs, mas nunca me passou pela cabeça comprá-los em livro. Há ainda os weblogs que nunca li mas, por razões que ao divino senhor caberá esclarecer, foram de tal forma «referência na Internet» que alguns editores viram neles uma absoluta necessidade de edição em papel (tome-se de exemplo No Parapeito, de Rita Ferro Rodrigues). Um dia ainda diremos: mais valem alguns weblogs a naufragar que certos livros na mão. Não é o caso de Esses Dias – HenryKiller.Blog (Canto Escuro, Abril de 2005), cujo autor e editor Vítor Vicente (n. 1983) em boa hora me fez chegar às mãos. Objecto obscuro, dificilmente me proporcionaria as horas de prazer que proporcionou não fosse a urbanidade do seu autor. O mais fácil seria catalogar de literário este HenryKiller.Blog, mas tudo se extravasa nesta escrita (mormente os catálogos). De estro tão hábil quanto incisivo, as entradas denunciam um culto levado à prática por tudo o que seja «literatura libertária» e afins. O autor não se inibe de declarar as suas preferências, sejam elas literárias (Miller e Burroughs), filosóficas (Marx e Nietzsche), melómanas (Mão Morta e Nick Cave), cinéfilas (João César Monteiro e Woody Aleen) ou poéticas (Pessoa e Rilke). Sucedem-se fascinadas leituras de livros, relatos quotidianos, evocações de amigos, microbiografias, elogios ao comunismo, numa fluidez literária que desculpa a ausência de uma revisão mais criteriosa à qual escaparam algumas gralhas de outra forma imperdoáveis. Mas os momentos mais entusiasmantes deste diário outrora on-line são, quanto a mim, os relatos da sobrevivência académica. Ex-aluno de Filosofia, transferido da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Vítor Vicente não se poupa na denúncia da xaropada burocrática que enferma o mundo académico português: «Ninguém sabe nada. A ignorância é generalizada, como uma febre que alastra indiscriminadamente pela população. Tudo são signos ilegíveis e códigos indecifráveis» (p. 17). Fá-lo citando nomes e numa linguagem que não pede licença nem reza a Deus, ciente das consequências da atitude passada a comportamento: «Ser desbocado sai caro. Paga-se uma taxa alfandegária muito alta por se transpor a fronteira da linguagem ligeira e cómoda, por se fazer da boca a porta-voz do que nos vai no cérebro e/ou no coração» (p. 153). Durante um ano de weblog o autor diz ter-se divertido. Ao lê-lo agora, diverti-me eu.

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