Às vezes apetece-me acabar, pôr um fim aos fins, suster a respiração e ficar, para sempre, assim detido. Depois penso que deve haver por aí alguém, alguém sem nome, um anjo da guarda, talvez, que me conduz, que me mantém acordado, que me desbrava os caminhos mais simples neste deserto que é preciso desbravar. Deve haver alguém no mundo que não ambicione ser alguém. Penso nesse outro, escondido na sombra dos seus actos, e sinto uma estranha cumplicidade. Não o conheço, mas somos cúmplices, por exemplo, no escuro de uma sala de cinema. Fui poucas vezes ao cinema este ano. Devo ter visto duas dezenas dos filmes que estrearam nas salas portuguesas durante 2007, a maioria já em edição DVD. Apreciei as duas incursões de Clint Eastwood pela II Grande Guerra (Flags of Our Fathers e Letters from Iwo Jima), entusiasmei-me com o mais recente Fincher (Zodiac), deixei-me levar pelas alucinações de Inland Empire e guardo boa memória d’O Grande Silêncio. Mas houve um único filme que me entusiasmou verdadeiramente este ano. Trata-se de As Vidas dos Outros, do alemão Florian Henckel von Donnersmarck. É provável que esse entusiasmo tenha ficado a dever-se ao carácter da personagem central, um oficial das Stasi (polícia secreta da RDA) com a missão de espiar um escritor suspeito de conspirar contra o regime. Os porquês desta personagem me cativar não são fáceis de responder, embora já tenha pensado muito sobre eles. Quem já viu o filme, sabe que o tal escritor acaba por escapar a retaliações mais duras graças aos relatórios falsos do oficial que o espiava. Ficamos sem saber se os relatórios foram falsificados porque o oficial das Stasi se desiludiu com o sistema, se apaixonou pela mulher do escritor ou por uma vida que nunca tinha tido. Sabemos apenas que ele os falsificou. E sabê-lo oferece-nos, pelo menos, a ilusão de que por detrás dos sistemas mais inóspitos, pode haver alguém que, na solidão de forças íntimas que não nos compete questionar, boicote o sistema, pode sempre haver alguém que sabote o sistema, que faça com o sistema o que o sistema passa a vida a fazer connosco. Porque afinal, as vidas dos outros são também as nossas vidas.
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