segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

A VELHA E OUTRAS HISTÓRIAS

Ando há dias às voltas com um texto sobre A Velha e Outras Histórias, colectânea abrangente do trabalho literário de Daniil Harms, traduzida e organizada por Nina Guerra e Filipe Guerra. Não me é fácil escrever sobre o autor, muito menos sobre as palavras que deixou escritas. Acontece-me sempre com autores que admiro para lá do que a razão logra sustentar. É assim com a obra de Harms, a qual exige, julgo, uma grande dose de paixão ao leitor que ouse entregar-se nas suas mãos. Não se trata de um autor hermético, nem de um surrealista pouco mais que indecifrável. Trata-se, antes, de um dos grandes mestres do absurdo, mas daquele absurdo com um cunho existencialista que põe constantemente à prova os nossos preconceitos lógicos e morais, a nossa fé e a nossa vontade. Se não me engano, tomei conhecimento da sua existência através da extinta Periférica. Procurei o que havia disponível do autor em língua portuguesa e encontrei as Crónicas da Razão Louca (1994) – grande título – na colecção memória do abismo da Hiena Editora. Com a leitura desse pequeno volume, seleccionado e traduzido por Sérgio Moita, adensou-se o espanto e a admiração pelo universo harmsiano. O que há na obra de Daniil Ivánovitch Iuvatchov (1905-1942) que o justifique? Nada. Quando justificados, o espanto e a admiração perdem significado, deixam de ser espanto e admiração para passarem a ser outra coisa qualquer que, muito simplesmente, resulta na banalização do que apenas faz sentido enquanto resiste à banalidade. Alguns aspectos da vida do homem são significativos. Nasceu e sobreviveu, até poder, na opressora sociedade soviética; integrou um grupo de poetas experimentais, do qual se afastou para fundar uma não menos experimental – se relativizarmos o conceito – associação de artistas: a OBERIU (Associação da Arte Real); sofreu o ostracismo que muitos, como ele, sofreram naqueles tempos em que a arte ainda era temida, tendo, em consequência disso, vivido miseravelmente; foi preso duas vezes, a última das quais culminando no seu misterioso desaparecimento num hospital psiquiátrico. Filipe Guerra, na introdução, informa-nos que: «As raízes artísticas de Harms estão bastante bem estudadas pelos especialistas, e são sobretudo Gógol, Dostoiévski, Saltikov-Chedrin, Hamsun, Carrol. Pode ter-se também a ousadia de se considerar Harms o representante russo – casual ou não – do surrealismo» (p. 10). Talvez não menos ousadamente o possamos considerar um dos maiores representantes da chamada literatura do absurdo – no que ela se toca com o existencialismo -, juntamente com Samuel Beckett (1906-1989), Albert Camus (1913-1960) ou Eugène Ionesco (1909-1994). A verdade é que a obra de Harms, tal como todas as grandes obras, excede as fronteiras delimitadoras dos géneros que, ao longo dos tempos, vão permitindo organizar o caótico mundo da criação humana. Podemos apenas ter em conta a novela que Nina Guerra e Filipe Guerra destacam no título desta colectânea, para facilmente chegarmos a algumas conclusões: o humor (geralmente negro), o absurdo, o caricato, a alucinação, o grotesco, o fantástico, a justaposição de planos onde o real se confunde com o onírico, são apenas um recurso para confrontar o leitor com a ausência de sentido que se esconde por detrás da manta lógica com que nos protegemos da verdade mais gélida e cruel, ou seja, a de que a nossa existência é ilógica. Tudo se passa deste modo nas historietas, nos pequenos dramas, nas poesias de Daniil Harms. Se algum sentido almeja a nossa existência, então esse sentido apenas pode ser apontado na liberdade com que cada um constrói o seu mundo. Chego a esta conclusão e reparo que há uma curiosa coincidência entre as obras que mais me marcaram no decorrer de 2007. Quer estejamos a falar do filme As Vidas dos Outros, da música dos Gogol Bordello ou das histórias de Daniil Harms, assalta-nos sempre a vontade de, quebrando as regras (lógicas, sociais, culturais), rasgando as leis, conseguirmos conquistar a síntese única e irrepetível que nos distinguirá dos demais. Uma síntese que seja, acima de tudo, a prática de uma liberdade sempre ameaçadora, porque indomesticável. Uma síntese esclarecedora no limite das suas propostas. Resta dizer que as outras histórias que se juntam à novela A Velha são muitas e bastante diversificadas, entre as quais vários pequenos dramas, alguns anexos de manifesto interesse e, no final, três poemas.

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