sábado, 5 de janeiro de 2008

DUAS PEQUENAS EDIÇÕES

Chegaram-me recentemente às mãos duas pequenas edições colectivas, publicadas no final de 2007, com um propósito que me parece comum: a comemoração. No caso de Natal, quarto volume da colecção afectos da Editora Labirinto, o objecto celebrativo é óbvio. Quanto a Uma Luz de Papel, mais um belo volume da colecção curtocircuito das Edições Éterogémeas, o pretexto da reunião é o nonagésimo quinto aniversário da histórica Livraria Académica. Comecemos pelo primeiro. Poemas de António Cardoso Pinto, António José Queirós, Artur F. Coimbra, António Salvado, Carlos Vaz (em prosa), Cláudio Lima, Daniel Gonçalves, Gonçalo Salvado, Graça Pires, Isabel Wolmar, José d’Encarnação, Juliana Miranda, Luís Raposo, Maria Augusta Silva, Maria do Sameiro Barroso, Maria João Fernandes, Maria Teresa Dias Furtado, Maria Teresa Horta, Pompeu Miguel Martins, Rui Lage, Victor Oliveira Mateus e Helena Langrouva evocam, num tom genericamente compassivo, o Deus Menino, Jesus, Belém, os anjos, o milagre, Dezembro e o Inverno, os reis magos, promessas, estrelas, «a ceia posta na mesa alva», crianças a sorrir, presépios, «sinos a tocar à meia-noite», muito amor e alguma palha. São poemas que, na generalidade, não escapam ao lirismo da época. É pena, se tivermos em conta o facto de que, hoje em dia, só mesmo alguns poetas ainda logram ver no Natal esse lugar de meditação e introspecção que nos absolve das pragas do mundo. Aproxima-se do espírito natalício actual o poema de Rui Lage, cujo título, Deixemos arder o pinheiro de Natal, é sintomático de uma época desferida contra a ingenuidade de uns poucos, a depravação de tantos e a hipocrisia de quase todos: «É grande o desgosto dos reis magos / junto ao regato de celofane azul: / já do colmo da manjedoura / tomam conta as labaredas, / propagam-se ao pinheiro de Natal / com suas bolas vermelhas, / estrela na ponta e luzes coloridas // compradas num comércio de província, / antes dos centros comerciais / com prendas de última hora / para primos afastados e outros / animais de estimação». Há ainda fotografias, ilustrações e desenhos de Ângela Mendes Ferreira, César Taíbo, João Artur Pinto, João Luís Dória, Júlio Cunha, M. Helena Delgado, Nuno Canelas, Ricardo Cunha e Mário Bruno Cruz. Agradou-me a fotografia de Ângela Mendes Ferreira, intitulada Contra o esquecimento dos burros, particularmente relevante, creio, numa época que muito se presta a atenções tão imprevistas quão transitórias. Nada transitória, como sabemos, é a dedicação aos livros de algumas casas que se confundem com quem nelas habita. António Barreto, na apresentação de Uma Luz de Papel, narra-nos, com suma brevidade, a sua história com a Livraria Académica, nomeadamente a partir da relação que estabeleceu com Nuno Canavez, proprietário daquele espaço - parte integrante da vida cultural da cidade do Porto e da arte de tratar os livros em Portugal. Entre as fotografias de Renato Roque, surgem poemas em verso de Ana Luísa Amaral, Jorge Sousa Braga, Filipa Leal, Inês Lourenço, João Pedro Mésseder, Carlos Alberto Braga, Jorge Velhote, Manuel António Pina e pequenas prosas de Manuel Jorge Marmelo, Emílio Remelhe, José Rui Teixeira, Mário Cláudio, Regina Guimarães e Teresa Tudela. Sendo o pretexto da edição o aniversário de uma livraria, natural que os temas sejam os livros e quem os cultiva. Recordo-me de aqui haver confessado a minha preferência pelas feiras de velharias em contraponto às feiras do livro, mas não me lembro de vos ter contado da minha paixão pelos alfarrábios. Usurpando os versos a Inês Lourenço, os livros usados trazem, de facto, mais uma história por contar. Terem circulado por outras mãos, confere-lhes uma força de vida que a novidade ainda não tem. Um livro velho é um livro resistente, faz-nos acreditar - quase como um acto de fé que, por ser isso mesmo, sabemos improvável - na possibilidade de uma existência que perdure para lá da implacável efemeridade de todas as coisas. Talvez por serem o receptáculo das ideias, os livros surgem-nos como um corpo imortal; ou, pelo menos, como o mais imortal dos corpos. Entrar num antiquário, num alfarrabista, oferece-nos essa experiência limite que é a constatação de que, para lá da fugacidade da nossa passagem pela terra, há no mundo um lugar onde o esquecimento perdurará… Até que uma mão, puxando-o da prateleira, o faça reviver na enca(de)rnação da memória.

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